Do além / From beyond
Indubitavelmente, a morte do corpo é uma caixa de surpresas, que nem sempre são as mais agradáveis à nossa formação.
O homem vaidoso presume-se o centro de todas as atenções em seu quadro social, nas horas rápidas da carne, e chega a se julgar herói, com direito ao respeito de todos por força de algum serviço que lhe haja afixado o nome nas galerias da evidência; mas o ciclone da realidade sopra, impetuoso, e dá por terra com esse ídolo de pés de barro, que fragorosamente se abate do altar a que se elevou.
Desce a alma à espessa corrente do Estige (rio lendário) humano, sorvendo o licor do esquecimento, enquanto as células físicas lhe reclamam cuidado; e, retomando lugar nas antigas fileiras de quantos se debatem no rio da ilusão, procura, com sede, o néctar da fantasia, que lhe confere simplesmente o sonho louco de transitório domínio.
Sempre a velha história do amblíope no país dos cegos. Enxergando imperfeitamente aquilo que os demais estão impossibilitados de ver, adorna a cabeça com a láurea de uma soberania ridícula, pois que, em verdade, mais cedo que supõe, é compelido a renovar os órgãos visuais para a contemplação mais justa da vida.
Antigamente, combatíamos o cativeiro e brandíamos o tacape da nossa indignação contra a megalomania escravagista. Usávamos a lâmina da palavra e fomentávamos o espírito revolucionário contra a displicência dos senhores rurais que mantinham, na América, o feudalismo da crueldade, pretendendo encontrar neles, com o nosso requinte de sarcasmo, os monstros infernais do chicote e da senzala, que a aristocracia do dinheiro e do poder metamorfoseava em sorridentes barões. E, ainda hoje, admitimos que não incorríamos em erro, zurzindo-lhes o costado com o látego da frase corretiva, semelhante ao cáustico que o médico, por zelo profissional, aplica numa chaga viva; entretanto, se o nosso concurso valeu, indiscutivelmente, para libertar milhares de companheiros asfixiados no tronco da humilhação ou enclausurados no quilombo da angústia, livrando-os da perseguição sistemática de capatazes impiedosos, em despertando além da morte reconhecemo-nos na situação de misérrimos escravos de nossas próprias paixões. Nós, que havíamos advogado a causa da abolição, que subíramos à tribuna para estigmatizar a maldade dos poderosos, que choráramos, expondo em público a miséria dos mais infelizes, acordávamos, por nossa vez, sob pesados grilhões.
Onde o maior grau de inconsciência? No homem que, por ignorância, procura aproveitar os braços de seus irmãos para favorecer o próprio interesse, ou naquele que, embora integrado no pleno conhecimento das suas responsabilidades, se rende à tirania dos impulsos inferiores que lhe aniquilam a vida?
Se eu pudesse voltar ao mundo, sem hesitação retomaria meus velhos sonhos de liberdade, mas não deixaria de observar os princípios enobrecedores na luta prática.
Quem não faz quanto ensina nos arraiais do bem, pode ser um sonhador, benéfico para os outros, mas infinitamente perigoso para si mesmo.
Aqui, encontrei muitos ricos que se aproveitaram de minha palavra para a reconciliação com a própria consciência, e que estenderam fraternas mãos para meu reerguimento.
Eu era o clínico enfermo, que os doentes melhorados ou restaurados vinham auxiliar.
O homem, cuja inteligência superara o ambiente em que nascera, cuja língua dominava multidões e que extirpara as úlceras sociais do seu tempo, vivera distanciado de si mesmo, sem coragem de aplicar aos próprios sentimentos o cautério que prescrevera à alheia conduta.
A morte, porém, é processo revelador de caracteres e corações, e hoje compreendo que, se noutro tempo era necessário delir a nódoa da escravidão nas órbitas exteriores da vida, reconheço também que o cativeiro das paixões, no mundo interno, é o domínio das trevas sobre nós, exigindo-nos enorme capacidade dos princípios que nos sustentam o ser em função do Supremo Bem.
Agora, observo, com mais clareza, a missão do Divino Libertador.
Jesus, naturalmente, não encabeçou qualquer movimento de extinção da escravocracia de seu tempo, não porque abonasse a indébita apropriação do trabalho de muitos por alguns, mas pela extrema compaixão, que muito mais a merecem dominadores do que servos.
Aos seus olhos compassivos, aquele que repousava molemente sobre as almofadas do poder se lhe afigurava mais digno de piedade que o infortunado cativo, desfeito em copioso suor. Os mais felizes não se encontravam nos serviços pesados do ministrar-se a alimentação, a higiene ou o ensino, mas na glória vazia dos titulares e dos libertos, impando de autoridade e de ouro, sem recursos, no entanto, para o desenvolvimento espiritual, encastelados na fortaleza da ilusão e da ignorância que a situação lhes impunha ou que os privilégios lhes outorgavam.
Escravidão! Escravidão! Quantos contrastes surpreendentes encerras! Não raro, o homem que se vale dos semelhantes para fins inconfessáveis, simplesmente estaciona, desditoso, na estrada, para favorecer o engrandecimento íntimo dos que o servem, quando não se impõe sobre os demais, arrojando-se, então ao despenhadeiro da miserabilidade.
O progresso pede ação, luta e sacrifício.
Muitas vezes, quando supomos subir entre os homens, estamos descendo perante as leis que nos regem; ao passo que muita gente, considerada verme rastejante nos últimos degraus da torre social do mundo, está realmente em sublime processo de elevação e aperfeiçoamento.
Do mestre imperecível profetizou Isaías:
– “Nascera como arbusto verde em terreno estéril!… Viverá na secura do chão árido, sem graça nem beleza… Asfixiado de ignomínias caminhará sob o desprezo dos homens. Assediado pelo sarcasmo do povo, não merecerá consideração!…É que Ele suportará o fardo imenso de nossas culpas, avocando a si os nossos padecimentos. Muitos enxergarão n'Ele um homem desditoso, dobrado ao peso da cólera de Deus, mas os nossos próprios delitos é que serão úlceras dolorosas a atormentá-lo… Todavia, em suas chagas encontraremos a nossa redenção. Somos o rebanho disperso no mundo e, para congregar-nos no caminho reto, sofrerá Ele o peso de nossas iniquidades… Amargurado e ferido, não desferirá o mais leve queixume, deixando-se conduzir qual cordeiro ao sacrifício. A sua morte passará como sendo a de um malfeitor, mas, desde o momento em que oferecer a sua vida por amor a todos, verá surgir numerosa descendência e os interesses divinos encontrarão milagrosa prosperidade em suas mãos”!…
O maior apostolado que o mundo conheceu foi realizado no cativeiro do serviço e da renúncia, com amor e com alegria.
Sirva-nos, deste modo, a Divina Lição.
Espírito Luís Gama, do livro Falando à Terra. Página recebida por Chico Xavier.
From beyond
Undoubtedly, the death of the body is a box of surprises, which are not always the most pleasant for our formation.The vain man is assumed to be the center of all attention in his social framework, in the quick hours of the flesh, and he comes to think of himself as a hero, entitled to the respect of everyone by virtue of some service that has affixed his name in the galleries of the city. evidence; but the cyclone of reality blows, impetuous, and it hits the ground with this clay-footed idol, which thunderously falls from the altar to which it has risen.
The soul descends to the thick current of the human Styx (legendary river), sipping the liquor of oblivion, while the physical cells demand care; and, retaking his place in the old ranks of those who struggle in the river of illusion, he thirsts for the nectar of fantasy, which simply gives him the crazy dream of transitory domination.
Always the old story of the visually impaired in the country of the blind. Seeing imperfectly what others are unable to see, he adorns his head with the laurel of a ridiculous sovereignty, since, in fact, sooner than he supposes, he is compelled to renew the visual organs for the fairest contemplation of life. .
In the past, we fought captivity and brandished the club of our indignation against the slave megalomania. We used the blade of the word and encouraged the revolutionary spirit against the indifference of the rural lords who maintained, in America, the feudalism of cruelty, intending to find in them, with our refinement of sarcasm, the infernal monsters of the whip and the slave quarters, which the aristocracy of money and power metamorphosed into smiling barons. And, even today, we admit that we were not in error, bracing their sides with the whip of the corrective phrase, similar to the caustic that the doctor, out of professional zeal, applies to a living wound; however, if our contribution was undoubtedly worth the release of thousands of companions suffocated in the trunk of humiliation or cloistered in the quilombo of anguish, freeing them from the systematic persecution of merciless foremen, in awakening beyond death we recognize ourselves in the situation of wretched slaves of our own passions. We, who had advocated the cause of abolition, who had gone up to the rostrum to stigmatize the wickedness of the powerful, who had wept, publicly exposing the misery of the most unhappy, woke up, in our turn, in heavy shackles.
Where the greatest degree of unconsciousness? In the man who, out of ignorance, seeks to take advantage of the arms of his brothers to favor his own interest, or in the man who, although integrated in the full knowledge of his responsibilities, surrenders to the tyranny of the inferior impulses that annihilate his life?
If I could return to the world, I would unhesitatingly return to my old dreams of freedom, but I would not fail to observe the ennobling principles in practical struggle.
Anyone who does not do what he teaches in the camps of good can be a dreamer, beneficial for others, but infinitely dangerous for himself.
Here, I met many rich people who took advantage of my word for reconciliation with their own conscience, and who extended fraternal hands for my recovery.
I was the sick clinician, whom the improved or restored patients came to help.
The man, whose intelligence had surpassed the environment in which he was born, whose language dominated crowds and who had removed the social ulcers of his time, had lived distant from himself, without the courage to apply to his own feelings the cautery he had prescribed to the behavior of others.
Death, however, is a process that reveals characters and hearts, and today I understand that, if at one time it was necessary to delude the stain of slavery in the outer orbits of life, I also recognize that the captivity of passions, in the internal world, is the domain of darkness over us, demanding from us an enormous capacity for the principles that sustain our being in terms of the Supreme Good.
Now, I see more clearly the mission of the Divine Liberator.
Jesus, of course, did not lead any movement of extinction of the slavery of his time, not because he endorsed the undue appropriation of the work of the many by the few, but because of extreme compassion, which dominates much more than servants deserve it.
To his pitying eyes, the one who rested limply on the cushions of power seemed to him more worthy of pity than the unfortunate captive, broken down in copious sweat. The happiest were not found in the heavy tasks of providing food, hygiene or education, but in the empty glory of holders and freedmen, laden with authority and gold, without resources, however, for spiritual development, entrenched in the fortress of illusion and ignorance that the situation imposed on them or that the privileges granted them.
Slavery! Slavery! How many surprising contrasts you contain! Not infrequently, the man who uses his fellow men for unspeakable ends, simply parks, unhappily, on the road, to favor the intimate aggrandizement of those who serve him, when he does not impose himself on others, throwing himself, then, to the cliff of misery.
Progress calls for action, struggle and sacrifice.
Often, when we suppose to ascend among men, we are descending before the laws that govern us; while many people, considered to be a worm on the bottom rungs of the social tower of the world, are really in a sublime process of elevation and improvement.
Of the imperishable master Isaiah prophesied:
– “He will be born as a green bush in barren ground!… He will live in the dryness of the arid ground, without grace or beauty… Asphyxiated by ignominies, he will walk under the contempt of men. Besieged by the sarcasm of the people, he won't deserve consideration!... It's because he will bear the immense burden of our guilt, calling our sufferings to himself. Many will see in Him a wretched man, bent under the weight of God's wrath, but it is our own crimes that will be painful ulcers tormenting him… However, in his wounds we will find our redemption. We are the flock scattered in the world and, in order to gather us on the straight path, He will bear the weight of our iniquities... Bitter and wounded, he will not make the slightest complaint, allowing himself to be led like a lamb to sacrifice. His death will pass as that of a malefactor, but from the moment he offers his life out of love for everyone, he will see numerous offspring arise and divine interests will find miraculous prosperity in his hands”!…
The greatest apostolate that the world has known was carried out in the bondage of service and renunciation, with love and joy.
In this way, serve us the Divine Lesson.
Spirit Luís Gama, from the book Falando à Terra. Page received by Chico Xavier.
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