28 janeiro 2020

A última ceia


A última ceia

Reunidos os discípulos em companhia de Jesus, no primeiro dia das festas da Páscoa, como de outras vezes, o mestre partiu o pão com a costumeira ternura. Seu olhar, contudo, embora sem trair a serenidade de todos os momentos apresentava misterioso fulgor, como se sua alma, naquele instante, vibrasse ainda mais com os altos planos do invisível.
Os companheiros comentavam com simplicidade e alegria os sentimentos do povo, enquanto o Mestre meditava, silencioso.
Em dado instante, tendo-se feito longa pausa entre os amigos palradores, o Messias acentuou com firmeza impressionante: amados, é chegada a hora em que se cumprirá a profecia da Escritura. Humilhado e ferido, terei de ensinar em Jerusalém a necessidade do sacrifício próprio, para que não triunfe apenas uma espécie de vitória, tão passageira quanto as edificações do egoísmo ou do orgulho humanos. Os homens têm aplaudido, em todos os tempos, as tribunas douradas, as marchas retumbantes dos exércitos que se glorificaram com despojos sangrentos, os grandes ambiciosos que dominaram à força o espírito inquieto das multidões; entretanto, eu vim de meu Pai para ensinar como triunfam os que tombam no mundo, cumprindo um sagrado dever de amor, como mensageiros de um mundo melhor, onde reinam o bem e a verdade. Minha vitória é a dos que sabem ser derrotados entre os homens, para triunfarem com Deus, na divina construção de suas obras, imolando-se, com alegria, para glória de uma vida maior.
Ante a resolução expressa naquelas palavras firmes, os companheiros se entreolharam, ansiosos.
O Messias continuou:
Não vos perturbeis com as minhas afirmativas, porque, em verdade, um de vós outros me há de trair!… As mãos, que eu acariciei, voltam-se agora contra mim.
Todavia, minh'alma está pronta para execução dos desígnios de meu Pai.
A pequena assembleia fez-se lívida. Com exceção de Judas, que entabulara negociações particulares com os doutores do Templo, faltando apenas o ato do beijo, a fim de consumar-se a sua defecção, ninguém poderia contar com as palavras amargas do Messias. Penosa sensação de mal-estar se estabelecera entre todos. O filho de Iscariotes fazia o possível por dissimular as suas dolorosas impressões, quando os companheiros se dirigiam ao Cristo com perguntas angustiadas:
Quem será o traidor? Disse Filipe, com estranho brilho nos olhos.
Serei eu? Indagou André ingenuamente.
Mas, afinal – objetou Tiago, filho de Alfeu, em voz alta –, onde está Deus que não conjura semelhante perigo?
Jesus, que se mantivera em silêncio ante as primeiras interrogações, ergueu o olhar para o filho de Cleofas e advertiu:
Tiago, faze calar a voz de tua pouca confiança na sabedoria que nos rege os destinos. Uma das maiores virtudes do discípulo do Evangelho é a de estar pronto ao chamado da Providência Divina. Não importa onde e como seja o testemunho de nossa fé. O essencial é revelarmos a nossa união com Deus, em todas as circunstâncias. É indispensável não esquecer a nossa condição de servos de Deus, para bem lhe atendermos ao chamado, nas horas de tranquilidade ou de sofrimento. A esse tempo, havendo-se calado novamente o Messias, João interveio, perguntando: Senhor, compreendo a vossa exortação e rogo ao Pai a necessária fortaleza de ânimo, mas, por que motivo será justamente um dos vossos discípulos o traidor de vossa causa? Já nos ensinastes que, para se eliminarem do mundo os escândalos outros escândalos se tornam necessários; contudo, ainda não pude atinar com a razão de que um possível traidor fosse do próprio colégio de edificação e de amizade.
Jesus pousou no interlocutor os olhos serenos e acentuou:
Em verdade, cumpre-me afirmar que não me será possível dizer-vos tudo agora, entretanto, mais tarde enviarei o Consolador, que vos esclarecerá em meu nome, como agora vos falo em nome de meu Pai.
E, detendo-se um pouco a refletir, continuou para o discípulo em particular:
Ouve, João: os desígnios de Deus, se são insondáveis, também são invariavelmente justos e sábios. O escândalo desabrochará em nosso próprio círculo bem-amado, mas servirá de lição a todos aqueles que vierem depois de nossos passos, no divino serviço do Evangelho. Eles compreenderão que para atingirem a porta estreita da renúncia redentora hão de encontrar, muitas vezes, o abandono, a ingratidão e o desentendimento dos seres mais queridos. Isso revelará a necessidade de cada qual firmar-se no seu caminho para Deus, por mais espinhoso e sombrio que ele seja.
O apóstolo impressionara-se vivamente com as derradeiras palavras do Mestre e passou a meditar sobre seus ensinos…

Chico Xavier/Humberto de Campos, do livro Boa Nova

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