20 janeiro 2025

O perdão


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As primeiras peregrinações do Cristo e de seus discípulos, em torno do lago, haviam alcançado inolvidáveis triunfos. Eram doentes atribulados que agradeciam o alívio buscado ansiosamente; trabalhadores humildes que se enchiam de santas consolações ante as promessas divinas da Boa Nova.
Aquelas atividades, entretanto, começaram a despertar a reação dos judeus rigoristas, que viam em Jesus um perigoso revolucionário. O amor que o profeta nazareno pregava vinha quebrar antigos princípios da lei judaica. Os senhores da terra observavam cuidadosamente as palestras dos escravos, que permutavam imenso júbilo, proveniente das esperanças num novo reino que não chegavam a compreender. Os mais egoístas pretendiam ver no profeta generoso um conspirador vulgar, que desejava levantar as iras populares contra a dominação de Herodes; outros presumiam na sua figura um feiticeiro incomum, que era preciso evitar.
Foi assim que a viagem do Mestre a Nazaré redundou numa excursão de grandes dificuldades, provocando de sua parte as observações quase amargas que se encontram no Evangelho, com respeito ao berço daqueles que o deveriam guardar no santuário do coração. Não foram poucos os adversários de suas ideias renovadoras que o precederam na cidade minúscula, buscando neutralizar-lhe ação por meio de falsas notícias e desmoralizá-lo, alimentando com informações mal alinhavadas de alguns nazarenos.
Jesus sentiu de perto a delicadeza da situação que se lhe criara com a primeira investida dos inimigos gratuitos de sua doutrina; mas, aproveitou todas as oportunidades para as melhores lições na esfera do ensinamento.
No entanto, o mesmo não aconteceu a seus discípulos. Filipe e Simão Pedro chegaram a questionar seriamente com alguns senhores da região, trocando palavras ásperas, em torno das edificações do Messias. As gargalhadas irônicas, as apreciações menos dignas lhes acendiam no ânimo propósitos impulsivos de defesas apaixonadas. Não faltavam os que viam no Senhor um servo ativo do espírito do mal, um inimigo de Moisés, um assecla de príncipes desconhecidos, ou de traidores ao poder político de Antipas. Tamanhas foram as discussões em Nazaré, que os seus reflexos nocivos se faziam sentir fortemente sobre toda a comunidade dos discípulos. Pedro e André advogavam a causa do Mestre com expressões incisivas e sinceras. Tiago aborrecia-se com a análise dos companheiros. Levi protestava, expressando o desejo de instituir debates públicos, de maneira a evidenciar-se a superioridade dos ensinos do Messias, em confronto com os velhos textos.
Jesus compreendeu os acontecimentos e, calmamente, ordenou a retirada, afastando-se da cidade com tranquilo sorriso.
Não obstante a determinação e apesar do regresso a Cafarnaum, a maioria dos apóstolos prosseguiu em discussão estranhando que o Mestre nada fizesse, reagindo contra as envenenadas insinuações a seu respeito.
Daí a alguns dias, obedecendo às circunstâncias ocorrentes naquela situação, Pedro e Filipe procuraram avistar-se com o Senhor, ansiosos pela claridade dos seus ensinos.
Mestre, chamaram-vos servo de Satanás e reagimos prontamente! Dizia Pedro, com sinceridade ingênua.
Observávamos que por vós mesmo nunca oporíeis a contradita ajuntava Filipe, convicto de haver prestado excelente serviço ao Mestre bem-amado e por isso revidamos aos ataques com a maior força de nossas expressões.
Não obstante o calor daquelas afirmativas, Jesus meditava com uma doce placidez no olhar profundo, enquanto os interlocutores o contemplavam, ansiando pela sua palavra de franqueza e de amor.
Afinal, saindo de suas reflexões silenciosas, o Mestre interrogou:
Acaso poderemos colher uvas nos espinheiros? De modo algum me empenharia em Nazaré numa contradita estéril aos meus opositores. Contudo, procurei ensinar que a melhor réplica é sempre a do nosso próprio trabalho, do esforço útil que nos seja possível. Nesse particular, não deixei de operar na minha esfera de ação, de modo a produzir resultados a nossa excursão à cidade vizinha, tornando-a proveitosa, sem desdenhar as palavras construtivas no instante oportuno. De que serviriam as longas discussões públicas, inçadas de doestos e zombarias? Ao termo de todas elas, teríamos apenas menores probabilidades para o triunfo glorioso do amor e maiores motivos para a separatividade e odiosas dissensões.
Só devemos dizer aquilo que o coração pode testemunhar mediante atos sinceros, porque, de outra forma, as afirmações são simples ruído sonoro de uma caixa vazia.
Mestre, atalhou Filipe, quase com mágoa, a verdade é que a maioria de quantos compareceram às pregações de Nazaré falava mal de vós!
Mas, não será vaidade exigirmos que toda gente tenha de nossa personalidade elevado conceito? Interrogou Jesus com energia e serenidade. Nas ilusões que as criaturas da Terra inventaram para a sua própria vida, nem sempre constitui bom atestado da nossa conduta o falarem todos bem de nós, indistintamente.
Agradar a todos é marchar pelo caminho largo, onde estão as mentiras da convenção. Servir a Deus é tarefa que deve estar acima de tudo e, por vezes, nesse serviço divino, é natural que desagrademos aos mesquinhos interesses humanos. Filipe, sabes de algum emissário de Deus que fosse bem apreciado no seu tempo? Todos os portadores da verdade do céu são incompreendidos de seus contemporâneos. Portanto, é indispensável consideremos que o conceito justo é respeitável, mas, antes dele, necessitamos obter a aprovação legítima da consciência, dentro de nossa lealdade para com Deus.
Mestre, obtemperou Simão Pedro, a quem as explicações da hora calavam profundamente, nos acontecimentos mais fortes da vida, não deveremos, então, utilizar as palavras enérgicas e justas?
Em toda circunstância, convém naturalmente que se diga o necessário, porém, é também imprescindível que não se perca tempo.
Deixando transparecer que as elucidações não lhe satisfaziam plenamente, perguntou Filipe:
Senhor, vossos esclarecimentos são indiscutíveis; entretanto, preciso acrescentar que alguns dos companheiros se revelaram insuportáveis nessa viagem a Nazaré: uns me acusaram de brigão e desordeiro; outros, de mau entendedor de vossos ensinamentos. Se os próprios irmãos da comunidade apresentam essas falhas, como há de ser o futuro do Evangelho?
O Mestre refletiu um momento e retrucou:
Estas são perguntas que cada discípulo deve fazer a si mesmo. Mas, com respeito à comunidade, Filipe, pelo que me compete esclarecer, cumpre-me perguntar-te se já edificaste o reino de Deus no íntimo do teu espírito.
É verdade que ainda não, respondeu, hesitante, o apóstolo.
De dentro dessa realidade, podes observar que, se o nosso colégio fosse constituído de irmãos perfeitos, teria deixado de ser irrepreensível pela adesão de um amigo que ainda não houvesse conquistado a divina edificação.
Ambos os discípulos compreenderam e se puseram a meditar, enquanto o Cristo continuava:
O que é indispensável é nunca perdermos de vista o nosso próprio trabalho, sabendo perdoar com verdadeira espontaneidade de coração. Se nos labores da vida um companheiro nos parece insuportável, é possível que também algumas vezes sejamos considerados assim. Temos que perdoar aos adversários, trabalhar pelo bem dos nossos inimigos, auxiliar os que zombam da nossa fé.
Nesse ponto de suas afirmativas, Pedro atalhou-o, dizendo:
Mas, para perdoar não deveremos aguardar que o inimigo se arrependa? E que fazer, na hipótese de o malfeitor assumir a atitude dos lobos sob a pele da ovelha?
Pedro, o perdão não exclui a necessidade da vigilância, como o amor não prescinde da verdade. A paz é um patrimônio que cada coração está obrigado a defender, para bem trabalhar no serviço divino que lhe foi confiado. Se o nosso irmão se arrepende e procura o nosso auxílio fraterno, amparemo-lo com as energias que possamos despender; mas, em nenhuma circunstância cogites de saber se o teu irmão está arrependido. Esquece o mal o trabalha pelo bem. Quando ensinei que cada homem deve conciliar-se depressa com o adversário, busquei salientar que ninguém pode ir a Deus com um sentimento de odiosidade no coração. Não poderemos saber se o nosso adversário está disposto à conciliação; todavia, podemos garantir que nada se fará sem a nossa boa vontade o pleno esquecimento dos males recebidos. Se o irmão infeliz se arrepender, estejamos sempre dispostos a ampará-lo e, a todo momento, precisamos e devemos olvidar o mal.
Foi quando, então, fez Simão Pedro a sua célebre pergunta:
Senhor, quantas vezes pecará meu irmão contra mim, que lhe hei de perdoar? Será até sete vezes?
Jesus respondeu-lhe, calmamente:
Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Daí por diante, o Mestre sempre aproveitou as menores oportunidades para ensinar a necessidade do perdão recíproco, entre os homens, na obra sublime da redenção.
Acusado de feiticeiro, de servo de Satanás, de conspirador, Jesus demonstrou, em todas as ocasiões, o máximo de boa vontade para com os espíritos mais rasteiros de seu tempo. Sem desprezar a boa palavra, no instante oportuno, trabalhou a todas as horas pela vitória do amor, com o mais alto idealismo construtivo. E no dia inesquecível do Calvário, em frente dos seus perseguidores e verdugos, revelando aos homens ser indispensável a imediata conciliação entre o espírito e a harmonia da vida, foram estas as suas últimas palavras:
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!…

Espírito Humberto de Campos, do livro Boa-nova, psicografado por Chico Xavier, em 1940.

19 janeiro 2025

Velhos e moços


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Não era raro observar-se, na pequena comunidade dos discípulos, o entrechoque das opiniões, dentro do idealismo quente dos mais jovens. Muita vez, o séquito humilde dividia-se em discussões, relativamente aos projetos do futuro.
Enquanto Pedro e André se punham a ouvir os companheiros, com a ingenuidade de seus corações simples e sinceros, João comentava os planos de luta no porvir; Tiago, seu irmão, falava do bom aproveitamento de sua juventude, ao passo que o jovem Tadeu fazia promessas maravilhosas.
Somos jovens, diziam. Iremos à Terra inteira, pregaremos o Evangelho às nações, renovaremos o mundo!…
Tão logo o Mestre permitisse, sairiam da Galileia, pregariam as verdades do reino de Deus naquela Jerusalém atulhada de preconceitos e de falsos intérpretes do pensamento divino. Sentiam-se fortes e bem-dispostos. Respiravam a longos haustos e supunham-se os únicos discípulos habilitados a traduzir com fidelidade os novos ensinamentos. Por longas horas, questionavam acerca de suas possibilidades apresentavam as suas vantagens, debatiam seus projetos imensos. E pensavam consigo: que poderia realizar Simão Pedro, chefe de família e encarcerado nos seus pequeninos deveres? Mateus não estava igualmente enlaçado por inadiáveis obrigações de cada dia? André e o irmão os escutavam despreocupados, para meditarem apenas quanto às lições do Messias.
Entretanto, Simão, mais tarde chamado o Zelote, antigo pescador do lago, acompanhava humilhado semelhantes conversações. Algo mais velho que os companheiros, suas energias, a seu ver, já não se coadunavam com os serviços do Evangelho do Reino. Ouvindo as palavras fortes da juventude dos filhos de Zebedeu, perguntava a si mesmo o que seria de seu esforço singelo, junto de Jesus. Começava a sentir mais fortemente o declínio das forças vitais. Suas energias pareciam descer de uma grande montanha, embora o espírito se lhe conservasse firme e vigilante, no ritmo da vida.
Deixando-se, porém, impressionar vivamente, procurou entender-se com o Mestre, buscando eximir-se das dúvidas que lhe roíam o coração.

Depois de expor os seus receios e vacilações, observou que Jesus o fitava sem surpresa, como se tivesse pleno conhecimento de suas emoções.
Simão, disse o Mestre com desvelado carinho, poderíamos acaso perguntar a idade de Nosso Pai? E se fôssemos contar o tempo, na ampulheta das inquietações humanas, quem seria o mais velho de todos nós? A vida, na sua expressão terrestre, é como uma árvore grandiosa. A infância é a sua ramagem verdejante. A mocidade se constitui de suas flores perfumadas e formosas. A velhice é o fruto da experiência e da sabedoria. Há ramagens que morrem depois do primeiro beijo do Sol, e flores que caem ao primeiro sopro da Primavera. O fruto, porém, é sempre uma bênção do Todo-poderoso. A ramagem é uma esperança; a flor uma promessa; o fruto é realização. Só ele contém o doce mistério da vida, cuja fonte se perde no infinito da divindade!…
Ao passo que o discípulo lhe meditava os conceitos, com sincera admiração, Jesus prosseguia esclarecendo:
Esta imagem pode ser também a da vida do espírito, na sua radiosa eternidade, apenas com a diferença de que aí as ramagens e as flores não morrem nunca, marchando sempre para o fruto da edificação. Em face da grandeza espiritual da vida, a existência humana é uma hora de aprendizado, no caminho infinito do Tempo; essa hora minúscula encerra o que existe no todo. É por isso que aí vemos, por vezes, jovens que falam com uma experiência milenária e velhos sem reflexão e sem esperança.
—Então, Senhor, de qualquer modo, a velhice é a meta do espírito? Perguntou o discípulo, emocionado.
—Não a velhice enferma e amargurada que se conhece na Terra, mas a da experiência que edifica o amor e a sabedoria. Ainda aqui, devemos recordar o símbolo da árvore, para reconhecer que o fruto perfeito é a frescura da ramagem e a beleza da flor, encerrando o conteúdo divino do mel e da semente.
Percebendo que o Mestre estendera seus conceitos em amplas imagens simbológicas, o apóstolo voltou a retrair-se em seu caso particular e obtemperou:
—A verdade, Senhor, é que me sinto depauperado e envelhecido, temendo não resistir aos esforços a que se obriga a minh’alma, na semeadura da vossa doutrina santa.
—Más, escuta Simão, redarguiu-lhe Jesus, com serenidade enérgica, achas que os moços de amanhã poderão fazer alguma coisa sem os trabalhos dos que agora estão envelhecendo?!… Poderia a árvore viver sem raiz, a alma sem Deus?! Lembra-te da tua parte de esforço e não te preocupes com a obra que pertence ao Todo-poderoso. Sobretudo, não olvides que a nossa tarefa, para dignidade perfeita de nossas almas, deve ser intransferível. João também será velho e os cabelos brancos de sua fronte contarão profundas experiências. Não te magoe a palestra dos jovens da Terra. A flor, no mundo, pode ser o princípio do fruto, mas pode também enfeitar o cortejo das ilusões.
Quando te cerque o burburinho da mocidade, ama os jovens que revelem trabalho e reflexão, entretanto, não deixes de sorrir, igualmente, para os levianos e inconstantes: são crianças que pedem cuidado, abelhas que ainda não sabem fazer o mel. Perdoa-lhes os entusiasmos sem rumo, como se devem esquecer os impulsos de um menino na inconsciência dos seus primeiros dias de vida.
Esclarece-os, Simão, e não penses que outro homem pudesse efetuar, no conjunto da obra divina, o esforço que te compete. Vai e tem bom ânimo!… Um velho sem esperança em Deus é um irmão triste da noite, mas eu venho trazer ao mundo as claridades de um dia perene.
Dando Jesus por terminado o seu esclarecimento, Simão, o Zelote, se retirou satisfeito, como se houvesse recebido no coração uma energia nova.
*
Voltando à casa pobre, Simão encontrou Tiago, filho de Cleofas, falando à margem do lago com alguns jovens, apelando ardentemente para as suas forças realizadoras.
Avistando o velho companheiro, o apóstolo mais moço não o ofendeu, porém fez uma pequena alusão à sua idade, para destacar as palavras de sua exortação aos companheiros pescadores. Simão, no entanto, sem experimentar qualquer laivo de ciúme, recordou as elucidações do mestre e, logo que se fez silêncio, ao reconhecer que Tiago estava só, falou-lhe com brandura:
Tiago, meu irmão, será que o espírito tem idade? Se Deus contasse o tempo como nós, não seria ele o mais velho de toda a criação? E que homem do mundo guardará a presunção de se igualar ao Todo-poderoso? Um rapaz não conseguiria realizar a sua tarefa na Terra, senão tivesse a precedê-lo as experiências de seus pais. Não nos detenhamos na idade, esqueçamos as circunstâncias, para lembrar somente os fins sagrados de nossa vida, que deve ser a edificação do Reino no íntimo das almas.
O filho de Alfeu escutou-lhe as observações singelas e reconheceu que eram ditas com uma fraternidade tão pura, que não lhe chegavam a ferir, nem de leve, o coração. Admirando a ternura serena do companheiro e sem esquecer o padrão de humildade que o Mestre cultivava, refletiu um momento e exclamou, comovido:
Tens razão!
O velho apóstolo não esperou qualquer justificativa de sua parte e, dando-lhe um abraço, mostrou-lhe um sorriso bom, deixando perceber que ambos deviam esquecer, para sempre, aquele minuto de divergência, a fim de se unirem cada vez mais em Jesus Cristo.

Naquela mesma tarde, quando o Messias começou a ensinar a sabedoria do Reino de Deus, Simão, o Zelote, notou que havia na praia duas criancinhas inconscientes. Dominada pela nova luz que fluía dos ensinamentos do Mestre, a mãe delas não vira que se distanciavam, ao longo do primeiro lençol raso das águas; o velho pescador, atento à pregação e às demais necessidades da hora em curso, observou os dois pequeninos e acompanhou-os. Com uma boa palavra, tomou-os nos braços, sentando-se numa pedra e, terminada que foi a reunião, os restituiu ao colo maternal, em meio de suave alegria e sincero reconhecimento. Inspirado por uma força estranha à sua alma, o discípulo compreendeu que o júbilo daquela tarde não teria sido completo se duas crianças houvessem desaparecido no seio imenso das águas, separando-se para sempre dos braços amoráveis de sua mãe. No âmago do seu espírito, havia um júbilo sincero. Compreendera com o Cristo o prazer de servir, a alegria de ser útil.
Nessa noite, Simão, o Zelote, teve um sonho glorioso para a sua alma simples.
Adormecendo de consciência feliz, sonhou que se encontrava com o Messias, no cume de um monte que se elevava em estranhas fulgurações. Jesus o abraçou com carinho e lhe agradeceu o fraterno esclarecimento fornecido a Tiago, em sua lembrança, manifestando-lhe reconhecimento pelo seu terno cuidado com duas crianças desconhecidas, por amor de seu nome.
O discípulo sentia-se venturoso naquele momento sublime. Jesus, do alto da colina prodigiosa, mostrava-lhe o mundo inteiro. Eram cidades e campos, mares e montanhas… Em seguida, o antigo pescador compreendeu que seus olhos assombrados divisavam as paisagens do futuro. Ao lado de seu deslumbramento, passava a imensa família humana. Todas as criaturas fitavam o Mestre, com os olhos agradecidos e refulgentes de amor. As crianças lhe chamavam “amigo fiel”; os jovens, “verdade do céu”; os velhos, “sagrada esperança”.
Simão acordou, experimentando indefinível alegria. Na manhã imediata, antes do trabalho, procurou o Senhor e beijou-lhe a fímbria humilde da túnica, exclamando jubilosamente:
Mestre, agora vos compreendo!…
Jesus contemplou-o com amor e respondeu:
Em verdade, Simão, ser moço ou velho, no mundo, não interessa!… Antes de tudo, é preciso ser de Deus!…

Humberto de Campos (Espírito), do livro Boa Nova, psicografado por Chico Xavier, em 1940.

18 janeiro 2025

Bom ânimo


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O apóstolo Bartolomeu foi um dos mais dedicados discípulos do Cristo, desde os primeiros tempos de suas pregações, junto ao Tiberíades. Todas as suas possibilidades eram empregadas em acompanhar o Mestre na sua tarefa divina.
Entretanto, Bartolomeu era triste e, vezes inúmeras, o Senhor o surpreendia em meditações profundas e dolorosas.
Foi, talvez, por isso que, uma noite, enquanto Simão Pedro e sua família se entregavam a inadiáveis afazeres domésticos, Jesus aproveitou alguns instantes para lhe falar mais demoradamente ao coração.
Após uma interrogativa afetuosa e fraternal, Bartolomeu deixou falasse o seu espírito sensível.
Mestre, exclamou timidamente, não saberia nunca explicar-vos o porquê de minhas tristezas amargurosas. Só sei dizer que o vosso Evangelho me enche de esperanças para o reino de luz que nos espera os corações, além, nas alturas…
Quando esclarecestes que o vosso reino não é deste mundo, experimentei uma nova coragem para atravessar as misérias do caminho da Terra, pois, aqui, o selo do mal parece obscurecer as coisas mais puras!… Por toda parte, é a vitória do crime, o jogo das ambições, a colheita dos desenganos!…
A voz do apóstolo se tornara quase abafada pelas lágrimas. Todavia, Jesus fitou-o brandamente e lhe falou, com serenidade:
A nossa doutrina, entretanto, é a do Evangelho ou da Boa Nova e já viste, Bartolomeu, uma  boa notícia não produzir alegria? Fazes bem, conservando a tua esperança em face dos novos ensinamentos; mas, não quero senão acender o bom ânimo no espírito dos meus discípulos. Se já tive ocasião de ensinar que o meu reino ainda não é deste mundo, isso não quer dizer que eu desdenhe o trabalho de estendê-lo, um dia, aos corações que mourejam na Terra. Achas, então, que eu teria vindo a este mundo, sem essa certeza confortadora? O Evangelho terá de florescer, primeiramente, na alma das criaturas, antes de frutificar para o espírito dos povos. Mas, venho de meu Pai, cheio de fortaleza e confiança, e a minha mensagem há de proporcionar grande júbilo a quantos a receberem de coração.
Depois de uma pausa, em que o discípulo o contemplava silencioso, o Mestre continuou:
A vida terrestre é uma estrada pedregosa, que conduz aos braços amorosos de Deus. O trabalho é a marcha. A luta comum é a caminhada de cada dia. Os instantes deliciosos da manhã e as horas noturnas de serenidade são os pontos de repouso; mas, ouve-me bem: Na atividade ou no descanso físico, a oportunidade de uma hora, de uma leve ação, de uma palavra humilde, é o convite de Nosso Pai para que semeemos as suas bênçãos sacrossantas. Em geral, os homens abusam desse ensejo precioso para anteporem a sua vontade imperfeita aos desígnios superiores, perturbando a própria marcha. Daí resultam as mais ásperas jornadas obrigatórias para retificação das faltas cometidas e muitas vezes infrutíferos labores. Em vista destas razões observamos que os viajores da Terra estão sempre desalentados. Na obcecação de sua vontade própria, ferem a fronte nas pedras da estrada, cerram os ouvidos à realidade espiritual, vendam os olhos com a sombra da rebeldia e passam em lágrimas, em desesperadas imprecações e amargurados gemidos, sem enxergarem a fonte cristalina, a estrela caridosa do céu, o perfume da flor, a palavra de um amigo, a claridade das experiências que Deus espalhou, para a sua jornada, em todos os aspectos do caminho.
Houve um pequeno intervalo nas considerações afetuosas, depois do que, sem mesmo perceber inteiramente o alcance de suas palavras, Bartolomeu interrogou:
Mestre, os vossos esclarecimentos dissipam os meus pesares, mas o Evangelho exige de nós a fortaleza permanente?
A verdade não exige: transforma, O Evangelho não poderia reclamar estados especiais de seus discípulos; porém, é preciso considerar que a alegria, a coragem e a esperança devem ser traços constantes de suas atividades em cada dia. Por que nos firmarmos no pesadelo de uma hora, se conhecemos a realidade gloriosa da eternidade com o Nosso Pai?
E quando os negócios do mundo nos são adversos? E quando tudo parece em luta contra nós? Perguntou o pescador, de olhar inquieto.
Jesus, todavia, como se percebesse, inteiramente, a finalidade de suas perguntas, esclareceu com bondade:
Qual o melhor negócio do mundo, Bartolomeu? Será a aventura que se efetua a peso de ouro, muita vez amordaçando-se o coração e a consciência, para aumentar as preocupações da vida material, ou a iluminação definitiva da alma para Deus, que se realiza tão-só pela boa vontade do homem, que deseje marchar para o seu amor, por entre as urzes do caminho? Não será a adversidade nos negócios do mundo um convite amigo para a criatura semear com mais amor, um apelo indireto que a arranque às ilusões da Terra para as verdades do reino de Deus?
Bartolomeu guardou aquela resposta no coração, não, todavia, sem experimentar certa estranheza. E logo, lembrando-se de que sua genitora partira, havia pouco tempo, para a sombra do túmulo, interpelou ainda, ansioso:
Mestre: não será justificável a tristeza quando perdemos um ente amado?
Mas, quem estará perdido, se Deus é o Pai de todos nós?… Se os que estão sepultados no lodo dos crimes hão de vislumbrar, um dia, a alvorada da redenção, por que lamentarmos, em desespero, o amigo que partiu ao chamado do Todo-poderoso? A morte do corpo abre as portas de um mundo novo para a alma.
Ninguém fica verdadeiramente órfão sobre a Terra, como nenhum ser está abandonado, porque tudo é de Deus e todos somos seus filhos. Eis por que todo discípulo do Evangelho tem de ser um semeador de paz e de alegria!…
Jesus entrou em silêncio, como se houvera terminado a sua exposição judiciosa e serena.
E, pois que a hora já ia adiantada, Bartolomeu se despediu. O olhar do Mestre oferecia ao seu, naquela noite, uma luz mais doce e mais brilhante; suas mãos lhe tocaram os ombros, levemente, deixando-lhe uma sensação salutar e desconhecida...

Embora nascido em Caná da Galileia, Bartolomeu residia, então, em Dalmanuta, para onde se dirigiu, meditando gravemente nas lições que havia recebido. A noite pareceu-lhe formosa como nunca. No alto, as estrelas se lhe afiguravam as luzes gloriosas do palácio de Deus à espera das suas criaturas, com hinos de alegria.
As águas do Genesaré, aos seus olhos, estavam mais plácidas e felizes. Os ventos brandos lhe sussurravam, ao entendimento, cariciosas inspirações, como um correio delicado que chegasse do céu.
Bartolomeu começou a recordar as razões de suas tristezas intraduzíveis, mas, com surpresa, não mais as encontrou no coração. Lembrava-se de haver perdido a afetuosa genitora; refletiu, porém, com mais amplitude, quanto aos desígnios da Providência Divina. Deus não lhe era pai e mãe nos céus? Recordou os contratempos da vida e ponderou que seus irmãos pelo sangue o aborreciam e caluniavam. Entretanto, Jesus não lhe era um irmão generoso e sincero? Passou em revista os insucessos materiais. Contudo, que eram as suas pescarias ou a avareza dos negociantes de Betsaida e de Cafarnaum, comparados à luz do reino de Deus, que ele trabalhava por edificar no coração?
Chegou a casa pela madrugada. Ao longe, os primeiros clarões do Sol lhe pareciam mensageiros ao conforto celestial. O canto das aves ecoava em seu espírito como notas harmoniosas de profunda alegria. O próprio mugido dos bois apresentava nova tonalidade aos seus ouvidos. Sua alma estava agora clara; o coração, aliviado e feliz.
Ao ranger os gonzos da porta, seus irmãos dirigiram-lhe impropérios, acusando-o de mau filho, de vagabundo e traidor da lei.
Bartolomeu, porém, recordou o Evangelho e sentiu que só ele tinha bastante alegria para dar a seus irmãos. Em vez de reagir asperamente, como de outras vezes, sorriu-lhes com a bondade das explicações amigas. Seu velho pai o acusou, igualmente, escorraçando-o. O apóstolo, no entanto, achou natural. Seu pai não conhecia a Jesus e ele o conhecia. Não conseguindo esclarecê-los, guardou os bens do silêncio e achou-se na posse de uma alegria nova. Depois de repousar alguns momentos, tomou as suas redes velhas e demandou sua barca. Teve para todos os companheiros de serviço uma frase consoladora e amiga. O lago como que estava mais acolhedor e mais belo; seus camaradas de trabalho, mais delicados e acessíveis. De tarde, não questionou com os comerciantes, enchendo-lhes, aliás, o espírito de boas palavras e de atitudes cativantes e educativas.
Bartolomeu havia convertido todos os desalentos num cântico de alegria, ao sopro regenerador dos ensinamentos do Cristo; todos o observaram com admiração, exceto Jesus, que conhecia, com júbilo, a nova atitude mental de seu discípulo.

No sábado seguinte, o Mestre demandou as margens do lago, cercado de seus numerosos seguidores. Ali, aglomeravam-se homens e mulheres do povo, judeus e funcionários de Antipas, a par de grande número de soldados romanos.
Jesus começou a pregar a Boa Nova e, a certa altura, contou, conforme a narrativa de Mateus, que “o reino dos céus é semelhante a um tesouro que, oculto num campo, foi achado e escondido por um homem que, movido de gozo, vendeu tudo o que possuía e comprou aquele campo”.
Nesse instante, o olhar do Mestre pousou sobre Bartolomeu que o contemplava, embevecido; a luz branda de seus olhos generosos penetrou fundo no íntimo do apóstolo, pela ternura que evidenciava, e o pescador humilde compreendeu a delicada alusão do ensinamento, experimentando a alma leve e satisfeita, depois de haver alijado todas as vaidades de que ainda se não desfizera, para adquirir o tesouro divino, no campo infinito da vida.
Enviando a Jesus um olhar de amor e reconhecimento, Bartolomeu limpou uma lágrima. Era a primeira vez que chorava de alegria. O pescador de Dalmanuta aderira, para sempre, aos eternos júbilos do Evangelho do Reino…

Humberto de Campos (Espírito), do livro Boa Nova, psicografado por Chico Xavier, em 1940.

17 janeiro 2025

A Luta contra o mal


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De todas as ocorrências da tarefa apostólica, os encontros do Mestre com os endemoninhados constituíam os fatos que mais impressionavam os discípulos.
A palavra “diabo” era então compreendida na sua justa acepção. Segundo o sentido exato da expressão, era ele o adversário do bem, simbolizando o termo, dessa forma, todos os maus sentimentos que dificultavam o acesso das almas à aceitação da Boa Nova e todos os homens de vida perversa, que contrariavam os propósitos da existência pura, que deveriam caracterizar as atividades dos adeptos do Evangelho.
Dentre os companheiros do Messias, Tadeu era o que mais se deixava impressionar por aquelas cenas dolorosas. Aguçavam-lhe, sobremaneira, a curiosidade de homem os gritos desesperados dos espíritos malfazejos, que se afastavam de suas vítimas sob a amorosa determinação do Mestre Divino.
Quando os pobres obsedados deixavam escapar um suspiro de alívio, Tadeu volvia os olhos para Jesus, maravilhado de seus feitos. 
Certo dia em que o Senhor se retirara, com Tiago e João, para os lados de Cesareia de Filipe, uma pobre demente lhe foi trazida, a fim de que ele, Tadeu, anulasse a atuação dos Espíritos perturbadores que a subjugavam. Entretanto, apesar de todos os esforços de sua boa vontade, Tadeu não conseguiu modificar a situação. Somente no dia imediato, ao anoitecer, na presença confortadora do Messias, foi possível à infeliz dementada recuperar o senso de si mesma.
Observando o fato, Tadeu caiu em sério e profundo cismar. Por que razão o Mestre não lhes transmitia, automaticamente, o poder de expulsar os demônios malfazejos, para que pudessem dominar os adversários da causa divina? Se era tão fácil a Jesus a cura integral dos endemoninhados, por que motivo não provocava ele de vez a aproximação geral de todos os inimigos da luz, a fim de que, pela sua autoridade, fossem definitivamente convertidos ao reino de Deus?
Com o cérebro torturado por graves cogitações e sonhando possibilidades maravilhosas para que cessassem todos os combates entre os ensinamentos do Evangelho e os seus inimigos, o discípulo inquieto procurou avistar-se particularmente com o Senhor, de modo a expor-lhe, com humildade, suas ideias íntimas. 
 
Numa noite tranquila, depois de lhe escutar as ponderações, perguntou-lhe Jesus, em tom austero: Tadeu, qual o principal objetivo das atividades de tua vida?
Como se recebesse uma centelha de inspiração superior, respondeu o discípulo com sinceridade: Mestre, estou procurando realizar o reino de Deus no coração.
Se procuras semelhante realidade, por que a reclamas no adversário em primeiro lugar? Seria justo esqueceres as tuas próprias necessidades nesse sentido?
Se buscamos atingir o infinito da sabedoria e do amor em Nosso Pai, indispensável se faz reconheçamos que todos somos irmãos no mesmo caminho!…
Senhor, os espíritos do mal são também nossos irmãos? Inquiriu, admirado, o apóstolo.
Toda a criação é de Deus. Os que vestem a túnica do mal envergarão um dia a da redenção pelo bem. Acaso, poderias duvidar disso? O discípulo do Evangelho não combate propriamente o seu irmão, como Deus nunca entra em luta com seus filhos; aquele apenas combate toda manifestação de ignorância, como o Pai que trabalha incessantemente pela vitória do seu amor, junto da humanidade inteira.
Mas, não seria justo, ajuntou o discípulo, com certa convicção, convocarmos todos os gênios malfazejos para que se convertessem à verdade dos céus?
O Mestre, sem se surpreender com essa observação, disse:
Por que motivo não procede Deus assim?… Porventura, teríamos nós uma substância de amor mais sublime e mais forte que a do seu coração paternal?
Tadeu, jamais olvidemos o bom combate. Se alguém te convoca ao labor ingrato da má semente, não desdenhes a boa luta pela vitória do bem, encarando qualquer posição difícil como ensejo sagrado para revelares a tua fidelidade a Deus. Abraça sempre o teu irmão. Se o adversário do reino te provoca ao esclarecimento de toda a verdade, não desprezes a hora de trabalhar pela vitória da luz, mas segue o teu caminho no mundo atento aos teus próprios deveres, pois não nos consta que Deus abandonasse as suas atividades divinas para impor a renovação moral dos filhos ingratos, que se rebelaram na sua casa. Se o mundo parece povoar-se de sombras, é preciso reconhecer que as leis de Deus são sempre as mesmas, em todas as latitudes da vida.
É indispensável meditar na lição de Nosso Pai e não estacionar a meio do caminho que percorremos. Os inimigos do reino se empenham em batalhas sangrentas? Não olvides o teu próprio trabalho. Padecem no inferno das ambições desmedidas? Caminha para Deus. Lançam a perseguição contra a verdade? Tens contigo a verdade divina que o mundo não te poderá roubar, nunca. Os grandes patrimônios da vida não pertencem às forças da Terra, mas às do Céu. O homem, que dominasse o mundo inteiro com a sua força, teria de quebrar a sua espada sangrenta, ante os direitos inflexíveis da morte. E, além desta vida, ninguém te perguntará pelas obrigações que tocam a Deus, mas, unicamente, pelo mundo interior que te pertence a ti mesmo, sob as vistas amoráveis de Nosso Pai.
Que diríamos de um rei justo e sábio que perguntasse a um só de seus súditos pela justiça e pela sabedoria do reino inteiro? Entretanto, é natural que o súdito seja inquirido acerca dos trabalhos que lhe foram confiados, no plano geral, sendo também justo se lhe pergunte pelo que foi feito de seus pais, de sua companheira, de seus filhos e irmãos. Andas assim tão esquecido desses problemas fáceis e singelos? Aceita a luta, sempre que fores julgado digno dela e não te esqueças, em todas as circunstâncias, de que construir é sempre melhor.
Tadeu contemplou o Mestre, tomado de profunda admiração. Seus esclarecimentos lhe caíam no espírito como gotas imensas de uma nova luz.
Senhor, disse ele, vossos raciocínios me iluminam o coração, mas, terei errado externando meus sentimentos de piedade pelos espíritos malfazejos? Não devemos, então, convocá-los ao bom caminho?
Toda intenção excelente, redarguiu Jesus, será levada em justa conta no céu, mas precisamos compreender que não se deve tentar a Deus. Tenho aceitado a luta como o Pai ma envia e tenho esclarecido que a cada dia basta o seu trabalho. Nunca reuni o colégio dos meus companheiros para provocar as manifestações dos que se comprazem nas trevas; reuni-os, em todas as circunstâncias e oportunidades, suplicando para o nosso esforço a inspiração sagrada do Todo-poderoso. O adversário é sempre um necessitado que comparece ao banquete das nossas alegrias e, por isso, embora não o tenha convocado, convidando somente os aflitos, os simples e os de boa vontade, nunca lhe fechei as portas do coração, encarando a sua vinda como uma oportunidade de trabalho, de que Deus nos julga dignos.
O apóstolo humilde sorriu, saciado em sua fome de conhecimento, porém acrescentou, preocupado com a impossibilidade em que se via de atender eficazmente à vítima que o procurara:
Senhor, vossas palavras são sempre sábias, entretanto, de que necessitarei para afastar as entidades da sombra, quando o seu império se estabeleça nas almas?!…
Voltamos, assim, ao início das nossas explicações retrucou Jesus, pois, para isso, necessitas da edificação do reino no âmago do teu espírito, sendo este o objetivo de tua vida. Só a luz do amor divino é bastante forte para converter uma alma à verdade. Já viste algum contendor da Terra convencer-se sinceramente tão-só pela força das palavras do mundo? As dissertações filosóficas não constituem toda a realização. Elas podem ser um recurso fácil da indiferença ou uma túnica brilhante, acobertando penosas necessidades. O reino de Deus, porém, é a edificação divina da luz. E a luz ilumina, dispensando os longos discursos. Capacita-te de que ninguém pode dar a outrem aquilo que ainda não possua no coração. Vai! Trabalha sem cessar pela tua grande vitória. Zela por ti e ama a teu próximo, sem olvidares que Deus cuida de todos.

Tadeu guardou os esclarecimentos de Jesus, para retirar de sua substância o mais elevado proveito no futuro.
No dia seguinte, desejando destacar, perante a comunidade dos seus seguidores, a necessidade de cada qual se atirar ao esforço silencioso pela sua própria edificação evangélica, o Mestre esclareceu aos seus apóstolos singelos, como se encontra dentro da narrativa de Lucas:
“Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos, procurando, e não o achando diz: Voltarei para a casa donde saí; e, ao chegar, acha-a varrida e adornada. Depois, vai e leva mais sete Espíritos piores do que ele, que ali entram e habitam; e o último estado daquele homem fica sendo pior do que o primeiro.”
Então, todos os ouvintes das pregações do lago compreenderam que não bastava ensinar o caminho da verdade e do bem aos Espíritos perturbados e malfazejos; que indispensável era edificasse cada um a fortaleza luminosa e sagrada do reino de Deus, dentro de si mesmo.

Humberto de Campos (Espírito), do livro Boa Nova, psicografado por Chico Xavier, em 1940.


16 janeiro 2025

Fidelidade a Deus


Translator
Depois das primeiras prédicas de Jesus, respeito aos trabalhos ingentes que a edificação do reino de Deus exigia dos seus discípulos, esboçou-se na fraterna comunidade um leve movimento de incompreensão. Quê? Pois a Boa Nova reclamaria tamanhos sacrifícios? Então o Senhor, que sondava o íntimo de seus companheiros diletos, os reuniu, uma noite, quando a turba os deixara a sós e já algumas horas haviam passado sobre o pôr do Sol.
Interrogando-os vivamente, provocou a manifestação dos seus pensamentos e dúvidas mais íntimas. Após escutar-lhes as confidências simples e sinceras, o Mestre ponderou:

Na causa de Deus, a fidelidade deve ser uma das primeiras virtudes. Onde o filho e o pai que não desejam estabelecer, como ideal de união, a confiança integral e recíproca? Nós não podemos duvidar da fidelidade do Nosso Pai para conosco.
Sua dedicação nos cerca os espíritos, desde o primeiro dia. Ainda não o conhecíamos e já ele nos amava. E, acaso, poderemos desdenhar a possibilidade da retribuição? Não seria repudiarmos o título de filhos amorosos, o fato de nos deixarmos absorver no afastamento, favorecendo a negação?
Como os discípulos o escutassem atentos, bebendo-lhe os ensinos, o Mestre acrescentou:
Tudo na vida tem o preço que lhe corresponde. Se vacilais receosos ante as bênçãos do sacrifício e as alegrias do trabalho, meditai nos tributos que a fidelidade ao mundo exige. O prazer não costuma cobrar do homem um imposto alto e doloroso? Quanto pagarão, em flagelações íntimas, o vaidoso e o avarento? Qual o preço que o mundo reclama ao gozador e ao mentiroso?

Ao clarão alvacento da Lua, como pai bondoso rodeado de seus filhinhos, Jesus reconheceu que os discípulos, diante das suas cariciosas perguntas, haviam transformado a atitude mental, como que iluminados por súbito clarão.
Timidamente, Tiago, filho de Alfeu, contou a história de um amigo que arruinara a saúde, por excessos nos prazeres condenáveis.
Tadeu falou de um conhecido que, depois de ganhar grande fortuna, se havia tornado avarento e mesquinho a ponto de privar-se do necessário, para multiplicar o número de suas moedas, acabando assassinado pelos ladrões.
Pedro recordou o caso de um pescador de sua intimidade, que sucumbira tragicamente, por efeito de sua desmedida ambição.
Jesus, depois de ouvi-los, satisfeito, perguntou:
Não achais enorme o tributo que o mundo exige dos que se apegam aos seus gozos e riquezas? Se o mundo pede tanto, por que não poderia Deus pedir-nos lealdade ao coração? Trabalhamos agora pela instituição divina do seu reino na Terra, mas, desde quando estará o Pai trabalhando por nós?
As interrogativas pairavam no espaço sem resposta dos discípulos, porque, acima de tudo, eles ouviam a que lhes dava o próprio coração.
Do firmamento infinito os reflexos do luar se projetavam no lençol tranquilo do lago, dando a impressão de encantador caminho para o horizonte, aberto sobre as águas, por entre deslumbramentos de luz.
Enquanto os companheiros meditavam no que dissera Jesus, Tiago se lhe dirigiu, nestes termos:
Mestre, tenho um amigo, de Corazim, que vos ouviu a palavra santificante e desejava seguir-vos; porém, asseverou-me que o reino pregado pela vossa bondade está cheio de numerosos obstáculos, acrescentando que Deus deve mostrar-se a nós outros somente na vitória e na ventura. Devo confessar que hesitei ante as suas observações, mas, agora, esclarecido pelos vossos ensinamentos, melhor vos compreendo e afirmo-vos que nunca esquecerei minha fidelidade ao reino!…

A voz do apóstolo, na sua confissão espontânea, se revelava tocada de entusiasmo doce e amigo e o Senhor, aproveitando a hora para a semeadura divina, exclamou, bondoso:
Tiago, nem todos podem compreender a verdade de uma só vez. Devemos considerar que o mundo está cheio de crentes que não entendem a proteção do céu, senão nos dias de tranquilidade e de triunfo.  Nós, porém, que conhecemos a vontade suprema, temos que lhe seguir o roteiro. Não devemos pensar no Deus que concede, mas no Pai que educa; não no Deus que recompensa, sim no Pai que aperfeiçoa. Daí se segue que a nossa batalha pela redenção tem de ser perseverante e sem trégua… 

Nesse ínterim, todos os companheiros de apostolado, manifestando o interesse que os esclarecimentos da noite lhes causavam, se puseram a perguntar, com respeito e carinho:
Mestre exclamou um deles, não seria melhor fugirmos do mundo para viver na incessante contemplação do reino?…
Que diríamos do filho que se conservasse em perpétuo repouso, junto de seu pai que trabalha sem cessar, no labor da grande família? Respondeu Jesus.
Mas, de que modo se há de viver como homem e como apóstolo do reino de Deus na face deste mundo? Inquiriu Tadeu.
Em verdade, esclareceu o Messias, ninguém pode servir, simultaneamente, a dois senhores. Fora absurdo viver ao mesmo tempo para os prazeres condenáveis da Terra e para as virtudes sublimes do céu.
O discípulo da Boa Nova tem de servir a Deus, servindo à sua obra neste mundo. Ele sabe que se acha a laborar com muito esforço num grande campo, propriedade de seu Pai, que o observa com carinho e atenta com amor nos seus trabalhos. Imaginemos que esse campo estivesse cheio de inimigos: por toda parte, vermes asquerosos, víboras peçonhentas, tratos de terra improdutiva. E certo que as forças destruidoras reclamarão a indiferença e a submissão do filho de Deus; mas, o filho de coração fiel a seu Pai se lança ao trabalho com perseverança e boa vontade. Entrará em luta silenciosa com o meio, sofrer-lhe-á os tormentos com heroísmo espiritual, por amor do reino que traz no coração plantará uma flor onde haja um espinho; abrirá uma senda, embora estreita, onde estejam em confusão os parasitos da Terra; cavará pacientemente, buscando as entranhas do solo, para que surja uma gota d’água onde queime um deserto. Do íntimo desse trabalhador brotará sempre um cântico de alegria, porque Deus o ama e segue com atenção.
Qual a primeira qualidade a cultivar no coração perguntou um dos filhos de Zebedeu, para que nos sintamos plenamente identificados com a grandeza espiritual da tarefa?
Acima de todas as coisas, respondeu o Mestre, é preciso ser fiel a Deus.
A pequena assembleia parecia altamente enlevada e satisfeita, mas, André inquiriu:
Mestre, nestes últimos dias, tenho-me sentido doente e receio não poder trabalhar como os demais companheiros. Como poderei ser fiel a Deus, estando enfermo?
Ouve, replicou o Senhor com certa ênfase, nos dias de calma, é fácil provar-se fidelidade e confiança. Não se prova, porém, dedicação, verdadeiramente, senão nas horas tormentosas, em que tudo parece contrariar e perecer. O enfermo tem consigo diversas possibilidades de trabalhar para Nosso Pai, com mais altas probabilidades de êxito no serviço. Tateando ou rastejando, busquemos servir ao Pai que está nos céus, porque nas suas mãos divinas vive o Universo inteiro!…

André, se algum dia teus olhos se fecharem para a luz da Terra, serve a Deus com a tua palavra e com os ouvidos; se ficares mudo, toma, assim mesmo, a charrua, valendo-te das tuas mãos. Ainda que ficasses privado dos olhos e da palavra, das mãos e dos pés, poderias servir a Deus com a paciência e a coragem, porque a virtude é o verbo dessa fidelidade que nos conduzirá ao amor dos amores!

O grupo dos apóstolos calara-se, impressionado, ante aquelas recomendações. O luar esplendia sobre as águas silenciosas. O mais leve ruído não traía o silêncio augusto da hora.
André chorava de emoção, enquanto os outros observavam a figura do Cristo, iluminada pelos clarões da Lua, deixando entrever um amoroso sorriso. Então, todos, impulsionados por soberana força interior, disseram, quase a um só tempo: Senhor, seremos fiéis!..
Jesus continuou a sorrir, como quem sabia a intensidade da luta a ser travada e conhecia a fragilidade das promessas humanas. Entretanto, do coração dos apóstolos jamais se apagou a lembrança daquela noite luminosa de Cafarnaum, aureolada pelo ensinamento divino. Humilhados e perseguidos, crucificados na dor e esfolados vivos, souberam ser fiéis, através de todas as vicissitudes da Natureza, e, transformando suas angústias e seus trabalhos num cântico de glorificação, sob a eterna inspiração do Mestre, renovaram a face do mundo.

Espírito Humberto de Campos, do livro Boa-nova, psicografado por Chico Xavier, em 1940.