Maria Santíssima III
A igreja de Éfeso exigia de João a mais alta expressão de sacrifício
pessoal, pelo que, com o decorrer do tempo, quase sempre Maria estava
só, quando a legião humilde dos necessitados descia o promontório
desataviado, rumo aos lares mais confortados e felizes. Os dias e as
semanas, os meses e os anos passaram incessantes, trazendo-lhe as
lembranças mais ternas. Quando sereno e azulado, o mar lhe fazia voltar à
memória o Tiberíades distante. Surpreendia no ar aqueles perfumes vagos
que enchiam a alma da tarde, quando seu filho, de quem nem um instante
se esquecia, reunindo os discípulos amados, transmitia ao coração do
povo as louçanias da Boa Nova. A velhice não lhe acarretara nem cansaços
nem amarguras. A certeza da proteção divina lhe proporcionava
ininterrupto consolo.
Como quem transpõe o dia em labores honestos e proveitosos, seu coração
experimentava grato repouso, iluminado pelo luar da esperança e pelas
estrelas fulgurantes da crença imorredoura. Suas meditações eram suaves
colóquios com as reminiscências do filho muito amado.
Súbito recebeu notícias de que um período de dolorosas perseguições se
havia aberto para todos os que fossem fiéis à doutrina do seu Jesus
Divino. Alguns cristãos banidos de Roma traziam a Éfeso as tristes
informações. Em obediência aos éditos mais injustos, escravizavam-se os
seguidores do Cristo, destruíam-se-lhes os lares, metiam-nos a ferros
nas prisões. Falava-se de festas públicas, em que seus corpos eram dados
como alimento a feras insaciáveis, em horrendos espetáculos.
Então, num crepúsculo estrelado, Maria entregou-se às orações, como de
costume, pedindo a Deus por todos aqueles que se encontrassem em
angústias do coração, por amor de seu filho.
Embora a soledade do ambiente, não se sentia só: uma como força singular
lhe banhava a alma toda. Aragens suaves sopravam do oceano, espalhando
os aromas da noite que se povoava de astros amigos e afetuosos e, em
poucos minutos, a lua plena participava, igualmente, desse concerto de
harmonia e de luz.
Enlevada nas suas meditações, Maria viu aproximar-se o vulto de um pedinte.
—Minha mãe – exclamou o recém-chegado, como tantos outros que recorriam
ao seu carinho –, venho fazer-te companhia e receber a tua bênção!
Maternalmente, ela o convidou a entrar, impressionada com aquela voz que
lhe inspirava profunda simpatia. O peregrino lhe falou do céu,
confortando-a delicadamente. Comentou as bem-aventuranças divinas que
aguardam a todos os devotados e sinceros filhos de Deus, dando a
entender que lhe compreendia as mais ternas saudades do coração. Maria
sentiu-se empolgada por tocante surpresa. Que mendigo seria aquele que
lhe acalmava as dores secretas da alma saudosa, com bálsamos tão
dulçorosos? Nenhum lhe surgira até então para dar; era sempre para pedir
alguma coisa. No entanto, aquele viandante desconhecido lhe derramava
no íntimo as mais santas consolações. Onde ouvira noutros tempos aquela
voz meiga e carinhosa?! Que emoções eram aquelas que lhe faziam pulsar o
coração de tanta carícia? Seus olhos se umedeceram de ventura, sem que
conseguisse explicar a razão de sua terna emotividade.
Foi quando o hóspede anônimo lhe estendeu as mãos generosas e lhe falou com profundo acento de amor:
—“Minha mãe, vem aos meus braços!”
Nesse instante, fitou as mãos nobres que se lhe ofereciam, num gesto da
mais bela ternura. Tomada de comoção profunda, viu nelas duas chagas,
como as que seu filho revelava na cruz e, instintivamente, dirigindo o
olhar ansioso para os pés do peregrino amigo, divisou também aí as
úlceras causadas pelos cravos do suplício. Não pôde mais. Compreendendo a
visita amorosa que Deus lhe enviava ao coração, bradou com infinita
alegria:
—Meu filho! Meu filho! As úlceras que te fizeram…!
E precipitando-se para ele, como mãe carinhosa e desvelada, quis
certificar-se, tocando a ferida que lhe fora produzida pelo último
lançaço, perto do coração.
Suas mãos ternas e solícitas o abraçaram na sombra visitada pelo luar,
procurando sofregamente a úlcera que tantas lágrimas lhe provocara ao
carinho maternal. A chaga lateral também lá estava, sob a carícia de
suas mãos. Não conseguiu dominar o seu intenso júbilo. Num ímpeto de
amor, fez um movimento para se ajoelhar. Queria abraçar-se aos pés do
seu Jesus e osculá-los com ternura. Ele, porém, levantando-a, cercado de
um halo de luz celestial, se lhe ajoelhou aos pés e, beijando-lhe as
mãos, disse em carinhoso transporte:
—“Sim, minha mãe, sou eu!… Venho buscar-te, pois meu Pai quer que sejas no meu reino a Rainha dos Anjos”…
Maria cambaleou, tomada de inexprimível ventura. Queria dizer da sua
felicidade, manifestar seu agradecimento a Deus, mas o corpo como que se
lhe paralisara, enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves da
saudação do Anjo, qual se a entoassem mil vozes cariciosas, por entre as
harmonias do céu.
No outro dia, dois portadores humildes desciam a Éfeso, de onde
regressaram com João, para assistir aos últimos instantes daquela que
lhes era a devotada Mãe Santíssima.
Maria já não falava. Numa inolvidável expressão de serenidade, por
longas horas ainda esperou a ruptura dos derradeiros laços que a
prendiam à vida material.
A alvorada desdobrava o seu formoso leque de luz quando aquela alma
eleita se elevou da Terra, onde tantas vezes chorara de júbilo, de
saudade e de esperança. Não mais via seu filho bem-amado, que certamente
a esperaria, com as boas vindas, no seu reino de amor, mas, extensas
multidões de entidades angélicas a cercavam cantando hinos de
glorificação.
Experimentando a sensação de estar se afastando do mundo, desejou rever a
Galileia com os seus sítios preferidos. Bastou a manifestação de sua
vontade para que a conduzissem à região do lago de Genesaré, de
maravilhosa beleza. Reviu todos os quadros do apostolado de seu filho e,
só agora, observando do alto a paisagem, notava que o Tiberíades, em
seus contornos suaves, apresentava a forma quase perfeita de um alaúde.
Lembrou-se, então, de que naquele instrumento da Natureza Jesus cantara o
mais belo poema de vida e amor, em homenagem a Deus e à humanidade.
Aquelas águas mansas, filhas do Jordão marulhoso e calmo, haviam sido as
cordas sonoras do cântico evangélico.
Dulcíssimas alegrias lhe invadiam o coração e já a caravana espiritual
se dispunha a partir, quando Maria se lembrou dos discípulos perseguidos
pela crueldade do mundo e desejou abraçar os que ficariam no vale das
sombras, à espera das claridades definitivas do Reino de Deus. Emitindo
esse pensamento, imprimiu novo impulso às multidões espirituais que a
seguiam de perto. Em poucos instantes, seu olhar divisava uma cidade
soberba e maravilhosa, espalhada sobre colinas enfeitadas de carros e
monumentos que lhe provocavam assombro. Os mármores mais ricos
esplendiam nas magnificentes vias públicas, onde as liteiras patrícias
passavam sem cessar, exibindo pedrarias e peles, sustentadas por
misérrimos escravos. Mais alguns momentos e seu olhar descobria outra
multidão guardada a ferros em escuros calabouços. Penetrou os sombrios
cárceres do Esquilino, onde centenas de rostos amargurados retratavam
padecimentos atrozes. Os condenados experimentaram no coração um
consolo desconhecido.
Maria se aproximou de um a um, participou de suas angústias e orou com
as suas preces, cheias de sofrimento e confiança. Sentiu-se mãe daquela
assembleia de torturados pela injustiça do mundo. Espalhou a claridade
misericordiosa de seu espírito entre aquelas fisionomias pálidas e
tristes. Eram anciães que confiavam no Cristo, mulheres que por ele
haviam desprezado o conforto do lar, jovens que depunham no Evangelho do
Reino toda a sua esperança. Maria aliviou-lhes o coração e, antes de
partir, sinceramente desejou deixar-lhes nos espíritos abatidos uma
lembrança perene. Que possuía para lhes dar? Deveria suplicar a Deus
para eles a liberdade?! Mas, Jesus ensinara que com ele todo jugo é
suave e todo fardo seria leve, parecendo-lhe melhor a escravidão com
Deus do que a falsa liberdade nos desvãos do mundo. Recordou que seu
filho deixara a força da oração como um poder incontrastável entre os
discípulos amados. Então, rogou ao Céu que lhe desse a possibilidade de
deixar entre os cristãos oprimidos a força da alegria. Foi quando,
aproximando-se de uma jovem encarcerada, de rosto descarnado e
macilento, lhe disse ao ouvido:
—“Canta, minha filha! Tenhamos bom ânimo!… Convertamos as nossas dores da Terra em alegrias para o Céu”!…
A triste prisioneira nunca saberia compreender o porquê da emotividade
que lhe fez vibrar subitamente o coração. De olhos extáticos,
contemplando o firmamento luminoso, através das grades poderosas,
ignorando a razão de sua alegria, cantou um hino de profundo e
enternecido amor a Jesus, em que traduzia sua gratidão pelas dores que
lhe eram enviadas, transformando todas as suas amarguras em consoladoras
rimas de júbilo e esperança. Daí a instantes, seu canto melodioso era
acompanhado pelas centenas de vozes dos que choravam no cárcere,
aguardando o glorioso testemunho.
Logo, a caravana majestosa conduziu ao Reino do Mestre a bendita entre
as mulheres e, desde esse dia, nos tormentos mais duros, os discípulos
de Jesus têm cantado na Terra, exprimindo o seu bom ânimo e a sua
alegria, guardando a suave herança de nossa Mãe Santíssima.
Por essa razão, irmãos meus, quando ouvirdes o cântico nos templos
das diversas famílias religiosas do Cristianismo, não vos esqueçais de
fazer no coração um brando silêncio, para que a Rosa Mística de Nazaré
espalhe aí o seu perfume!
Humberto de Campos (Espírito), do livro Boa Nova psicografado por Chico Xavier, em 1940.
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