Leopoldo Cirne

Entre os novos recrutas de 1894 mais papáveis para rejuvenescer a diretoria havia três, que se destacaram rejuvenescer desde a entrada: Antônio Alves da Fonseca, Leopoldo Cirne e João Lourenço de Souza. Eram três pedras preciosas de cor diferente.
No plano que se traçou de moldurar o vulto de Bezerra de Menezes, o cronista vem sentindo a cada passo a necessidade de fazer ressaltar do fundo do quadro as personagens que mais animaram o ambiente e mais concorreram para o desempenho da missão do biografado. Cumpre-lhe, porém, relatar apenas os feitos que se relacionem com a vida de Bezerra de Menezes, deixando de lado tudo quanto, ainda que interessante, seja estranho ao tema histórico em desenvolvimento. Mas nesta altura abre por exceção um espaço à margem da biografia para não deixar passar em silêncio um ensinamento, que a vocação destes três homens, ainda vivos, exemplifica de uma sorte especial. De tal ensinamento há uma lei moral a recolher e que será de algum proveito para os propagandistas dos tempos presentes.
Convidado por José Seabra Monteiro, foi Antônio Alves da Fonseca uma noite à Federação ver o que era o Espiritismo. A palavra erudita e eloquente de Dias da Cruz, a prece "Cáritas" recitada com unção religiosa pelo propagandista Carlos Joaquim de Lima e Cirne, o recolhimento do auditório impressionaram a sua imaginação religiosa mas deixaram de ferir a sua conversão. E quando viu correr pelos assistentes, como nos templos protestantes, uma sacola em busca de cobres e níquéis, o ambiente se lhe tornou desfavorável, pensando estar entre espertos e crédulos. Não voltaria mais ali se não verificasse, depois, que também naquela casa existia, quase oculta, de acordo com o mandamento de Jesus, a Assistência aos Necessitados. Logo que a percebeu, converteu-se. O seu ponto fraco era a caridade. E pondo de lado como coisa secundária a retórica de sexta-feira e o palavrório do Reformador, tornou-se prestimoso elemento da Assistência, agindo ali com tal perícia cristã que muitos beneficiados ignoraram longo tempo e alguns jamais vieram a saber a verdadeira origem de certas espórtulas oportunas, que lhes chegavam em nome da Assistência.
Compreendendo a necessidade vicentina de pedir esmolas para esmolar aos necessitados, combateu a sacola durante a sessão e pregou a cooperação por outros meios menos antipáticos. Assim, convertido pela caridade e não pela ciência nem pela filosofia, tornou-se modelo de espírita-cristão, que pode ser imitado e igualado mas jamais excedido nas mesmas circunstâncias e contingências em que tem levado a sua vida exemplar. A fé, o desassombro da opinião, o desinteresse da atitude não lhe suplantam a prática de ações bondosas, que atestam a origem do seu convertimento. É, e será até o fim de sua passagem pela Terra, um dos mais lindos ornamentos morais da Federação, à qual deu o seu mais eficiente concurso... por causa da Assistência.
João Lourenço de Souza veio para o Espiritismo atraído pelo maravilhoso e pelo oculto, que lhe feriam a prodigiosa imaginação. Inteligente, ativo, com grande senso prático das coisas, viu no Espiritismo uma face que até aquele momento estava sendo desprezada. A propaganda não se podia fazer sem dinheiro e este podia ser tirado diretamente do Espiritismo, como se fazia na França. O lado utilitário do Espiritismo era e é o mais perigoso, o que mais tem queimado gente no facho da propaganda. É indispensável o máximo cuidado ao manejá-lo, pois o zinabre é um narcótico para o Espírito, tal como o timbó para o peixe. A Federação, porém, precisava de recursos materiais para viver. Souza organizou-lhe o comércio, estabeleceu-lhe a Livraria, editou-lhe as obras basilares, fez-lhe traduções, obteve-lhe direitos autorais e outros favores, criando-lhe em poucos anos uma fonte de renda honesta. Ninguém pode contestar o valor de seu concurso e esconder a dívida da Federação para com João Lourenço de Souza. Mas quando o operoso diretor se viu contrariado nos seus planos comerciais, deixou a sociedade para não mais voltar. Qual a causa fundamental da sua saída? A Assistência. Os lucros da Livraria não iam para o fundo de reserva que ele imaginava para o êxito mercantil da Federação; iam para os necessitados... Ele tinha razão do ponto de vista em que se colacara. Mas a Assistência gritava mais alto e venceu.
Leopoldo Cirne foi seduzido pela filosofia. Alfredo Pereira o levara a uma sessão de sexta-feira. Nada sabia Cirne de Espiritismo e era materialista.
Discutia-se naquela noite de 1894 a tese: "Como conciliar o livre arbítrio com o determinismo da prova". Terminada a sessão, em vez de transmitir sua impressão primeira sobre o meio, como em geral se faz, Cirne entrou a discutir com Alfredo Pereira a tese do dia como se fora um veterano. Grande psicólogo, Alfredo percebeu a espontânea conversão do materialista e seu grande talento.
Deu-lhe um O Livro dos Espíritos e pediu-lhe que usasse da palavra na próxima sexta-feira, em que voltaria a debate o mesmo assunto. Cirne fora tocado em seu ponto fraco: a filosofia. As forças latentes de seu formoso Espírito despertaram para a missão, como raios do sol de meio dia, renascido da nuvem. Não conseguiu ler em O Livro dos Espíritos, mais do que a Introdução, essa obra prima de Kardec. Pôs de lado o Livro, como se encerrasse um assunto sabido.
Era "espírita de nascença", como Bezerra de Menezes. E quando Dias da Cruz na sessão seguinte botou em discussão a tese, foi com desconfiança e curiosidade geral que aquele novato de olhos azuis, queixo saliente sobre colarinho alto, bonito e elegante, pediu a palavra, tirou do bolso umas tiras de papel e falou.
O presidente sussurrou ao ouvido de Alfredo Pereira:
— Quem é esse moço?
— Um amigo de Pernambuco, que me veio recomendado pelo Teodureto Duarte.
— Agarra-o para nós; precisamos dele.
— Já está seguro! Vai ajudar-me no Reformador.
E assim foi. Durante vinte anos o Reformador teve nele uma pena de mestre. O melhor de sua vida: toda a sua mocidade foi sacrificada à propaganda oral e escrita da filosofia que o empolgara desde o primeiro instante. Ninguém o excedeu em sacrifício de tempo, de saúde, de renúncia aos prazeres mundanos em holocausto à Doutrina. Mas, quando veio a luta entre a Assistência, que Pedro Richard comandava, e a Federação, que Cirne dirigia, luta cujo desfecho encerrou, em 1914, o sexto período da história do Espiritismo no Brasil, quiseram os desígnios de Deus que a Assistência triunfasse e submetesse a Federação ao seu jugo. Cirne saiu com o pesar de todos e dele próprio para ficar fora daquele tabernáculo, onde todos, sem exceção, sem absolutamente exceção alguma, desejariam vê-lo ativo e útil até o derradeiro dia de vida.
Não cabe aqui apreciar a causa teológica do acontecimento. Quem se interessar por ela deve procurá-la nos livros de Cirne, sobretudo no Anticristo. 
O que nos interessa é a lição dos fatos. Dissemos que uma lei moral podia ser retirada da vocação desses três neófitos de 1894. A lição é esta: Os que sustentaram a Federação por causa da Assistência permaneceram em ambas até o fim. A lei talvez seja esta: Os que defendem o Espiritismo, não pelo que encerra de científico, filosófico, religioso ou utilitário, mas pela caridade que ele pode praticar, esses ficarão fiéis até o fim. E serão salvos...
Possam deste exemplo tirar corolários quantos pretendam organizar sociedades espíritas duráveis.

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