Júlio César Leal
Voltemos a 1895. Júlio Leal, na presidência, Dias da Cruz, na vice-presidência, e Alfredo Pereira, na tesouraria, representavam os veteranos.
Leopoldo Cirne e João Lourenço de Souza, 1° e 2° secretários respectivamente, os novos. Antônio Alves da Fonseca incorporou-se à Assistência, que ainda não tinha representante na diretoria.
A plataforma presidencial consistiu numa conferência intitulada: "A unidade de Deus e a divindade de Jesus", em que Júlio Leal definiu uma orientação diversa da estabelecida por Dias da Cruz no ano anterior. Em vez de permanecer no meio termo, num terreno de Espiritismo puro, descambou com todo entusiasmo para o kardecismo, dando assim apoio aos "científicos" e afastando todos os "místicos". Não era possível esconder o perigo de uma próxima luta, que a diretoria passada se empenhara em evitar. O Reformador, nas mãos de Cirne e Arnaldo Pereira, abriu rumo oposto com uma série de artigos intitulados "Nossa Missão", inclinando-se para os "místicos". As duas atitudes eram no fundo e na forma antagônicas e coincidiam apenas num ponto, pacífico em todas as administrações: tornar a Federação o fulcro do movimento espírita. Esta concordância, porém, não obstava à luta intestina. A falta de harmonia na direção dividiu a sociedade em dois grupos, tal como sucedeu no Confucius, na Deus, Cristo e Caridade, na Fraternidade, na União, no Centro, etc.
Sendo radical a divergência, cada grupo pretendendo vir a ser a célula mater do Espiritismo brasileiro, a separação interior tinha que atingir o exterior. O grupo dos "científicos" encabeçado pelo professor abandonou a Federação e a Assistência e foi para a rua Visconde do Rio Branco n° 67 instalar, em fase nova (naquele tempo tudo se refazia da dispersão de 93), o Centro da União Espírita de Propaganda do Brasil, que seria composto de representantes de todas as sociedades, segundo o plano fracassado de Bezerra de Menezes, e teria uma caixa de propaganda em vez de uma assistência a necessitados. A inauguração se deu solenemente em 24 de maio de 1895, com sala enfeitada, discursos, banda de música e... coleta de dinheiro. (Ficou assentado desde logo que a receita seria contada à vista dos doadores e levada à caderneta n° 118.38356 da Caixa Econômica, para ser movimentada à medida das necessidades da propaganda.)
Júlio César Leal, solidário com o professor T, e sem perceber talvez o alcance moral de seu ato, aprovou a dissidência e nomeou Manoel Joaquim Moreira Maximino representante da Federação junto ao Centro. Tomou, portanto, uma posição de esquerda, incompatibilizando-se com os diretores "místicos" e tornando-se um elemento perigoso para a finalidade da Federação, cujo programa ia ser executado pelo Centro.
A nova agremiação dos científicos principiou a funcionar ruidosamente.
Aos domingos, suas sessões tinham números musicais, literários e outras amenidades, numa preocupação de mundanizar o Espiritismo, tirando-lhe o caráter reverencial e religioso que lhe dava, em contraste, a reunião espírita dos "místicos". Júlio Leal emprestava-lhe o concurso de sua presença e de sua palavra, relaxando os trabalhos da Federação, onde quase não aparecia. Em julho a crise chegou ao seu ponto agudo. Dias da Cruz tentou fazer a volta ao programa de meio termo, em que depositava confiança e soltou o primeiro foguete, num artigo epigrafado "Tolerância e Bondade", que refletia um pensamento nobre e conciliador: "Uma das virtudes que devem constituir o fundo do caráter de um espírita e que o devem distinguir dos religionários de outra qualquer doutrina é sem contestação a tolerância, porque o Espiritismo é uma tenda a cujo abrigo se podem acolher todos os que, no recesso de sua alma, aninham um sentimento de religião, quaisquer que sejam as formas de que seu culto externo se revista".
Examinadas as peças dessa época e buscando debaixo da letra o espírito, não é possível negar à corrente "tolerante", à testa da qual estava Dias da Cruz, um raro bom senso. Estamos bem distantes e falando sem qualquer paixão e quem se puser na mesma neutralidade verá que o trecho transcrito encerra uma verdade para fora e uma verdade para dentro. Para fora, quando parece falar a gentios; para dentro, quando se aplica aos próprios espíritas. O Espiritismo, diz o articulista, é uma tenda a cujo abrigo se podem acolher todos, qualquer que seja o seu ponto de vista em matéria de fé. Sim, tomando-se o Espiritismo em sua pureza, tal como nasceu e serviu de base a O Livro dos Espíritos. Recalcada a fé religiosa ao fundo da consciência de cada um, onde deve permanecer respeitada e viva, todos poderão associar-se em torno dos princípios fundamentais do Espiritismo puro, estabelecendo uma fraternidade inteligente e política.
Dizemos Espiritismo puro, repetimos, para o distinguir do kardecismo, Rustanismo, Antonismo, Swdemborgismo, Oxonismo, e outras seitas formadas depois de O Livro dos Espíritos e à custa de seus princípios fundamentais.
Dentro dele todas as seitas poderão viver, e estão vivendo, irmanadas, pois o Espiritismo puro não tem preferência por nenhuma. Sob seu pálio podem ficar não somente as seitas nascidas dele próprio, como todas as religiões deístas e animistas do mundo, que se contam para mais de 2.000.
Só o Espiritismo puro, que considera todas as crenças como simples bandeiras de tribos, goza desse espírito universal de tolerância. Ora, estavam os federacionistas e os centristas em condições de se tolerarem mutuamente? Não, porque eram com raras exceções sectaristas rubros e assim iguais a todos os "religionários", que primam sempre pela intolerância. Sejamos um pouco mais explícitos neste ponto, ainda que fora de nosso tema principal, pois vimos à diferenciação entre Espiritismo e Kardecismo aceita por muitos mas repelida “in limine” (no limiar) por alguns, e nosso maior desejo é ser compreendido por todos. Sem a noção clara dessa diferença perderia todo o sentido esta crônica, e a história da luta em que Bezerra de Menezes encontrou a glória seria apenas uma fantasia.
Denominamos com Allan Kardec (*) doutrina espírita a que O Livro dos Espíritos contém, e chamamos Kardecismo a doutrina que não se encontra no referido livro e sim nas diversas obras que Allan Kardec escreveu Segundo o Espiritismo, isto é, segundo outra doutrina, que ele mesmo denominou espírita.
O Espiritismo tem princípios fundamentais, que servem a muitas religiões.
Adaptando esses princípios à moral de Jesus e explicando uma parte da doutrina cristã à luz do Espiritismo, Kardec criou uma nova interpretação do Cristianismo. Assim, Kardecismo é o espiritismo cristão, ou Cristianismo espírita. É uma aliança de princípios espíritas com princípios cristãos.
No Kardecismo todos são "irmãos em Jesus". O kardecista diz: quem não é por Jesus é contra Jesus. Portanto, o espírita que toma para Mestre a Buda, por exemplo, não é kardecista, não é "irmão em Jesus". Mas é espírita desde que aceite os princípios fundamentais da Doutrina Espírita.
A fé cristã é uma fé particular e não é a única no mundo. Já dissemos, há mais de duas mil que não são cristãs. Sendo a fé cristã a única tolerável no Kardecismo, segue-se que todas as demais lhe estão de fora. No entanto, podem ficar dentro do Espiritismo.
(*)- Nota da Editora: A Doutrina Espírita não consiste apenas no que está contido em O Livro dos Espíritos, mas é formada pelas cinco obras básicas que constituem a Codificação Kardequiana:
O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, além de outras obras subsidiárias. Espiritismo e Doutrina Espírita são sinônimos, devendo-se evitar a denominação Kardecismo, pois o vocábulo Espiritismo foi criado pelo próprio Allan Kardec para denominar a Doutrina por ele codificada.
No Kardecismo a tolerância só existe para os que possuam a mesma fé cristã. Acontece no Rustanismo o mesmo com agravantes. Neste a intolerância ainda é maior, pois não lhe bastam as credenciais kardecistas, isto é, não basta para ser rustanista acreditar no Espiritismo e no Cristianismo. É imprescindível crer também em certos dogmas, como, por exemplo, a virgindade de Maria, a concepção imaculada, a natureza extra-humana da carne de Jesus, a divindade do Cristo, etc. Para o Kardecista, Jesus é um chefe espiritual, a quem coube a segunda revelação, tal como Moisés, a quem Deus confiou a primeira. Para o rustanista "é a maior essência espiritual depois de Deus". Muitos não querem "ver" diferença entre Kardecismo e Rustanismo, entre Kardecismo e Espiritismo.
São geralmente os que não são nem kardecistas nem rustanistas, nem espíritas, mas crédulos.
O Livro dos Espíritos está para o Espiritismo, o Kardecismo, o Rustanismo, o Antonismo, etc., como a Bíblia está para o Judaísmo, o Cristianismo, o Islamismo, e outras seitas que se fundam no Velho Testamento.
Na Bíblia está a Palavra de Eloim, de Jeová, de Adonai, que foi interpretada de modos diferentes pelos judeus, pelos cristãos e pelos islamitas. Em O Livro dos Espíritos está a Palavra de diversos Espíritos, que podem ser interpretada também pelos judeus, pelos cristãos e pelos islamitas. Cada interpretação terá um nome e constituirá uma seita, reunindo adeptos pela propaganda, que não pode ser senão combatente e, portanto, intolerante.
Dada a divergência profunda entre os "científicos" e os "místicos" consumou-se a crise em meado de julho. Júlio Leal renunciou à presidência e foi para o Centro. Dias da Cruz, alegando a sua incompatibilidade com a Assistência e com qualquer programa sectário, não quis o cargo que lhe competia, preferindo recolher-se a voluntário ostracismo. Dos veteranos ficou só Alfredo Pereira na diretoria.
Chegara a oportunidade dos "místicos". Para fazer triunfar definitivamente este partido na Federação e varrer daí todos os opositores de Ismael bastava, em primeiro lugar, encontrar um presidente místico e, logo em seguida, lançar um plano de organização, que anulasse o do Centro.
O presidente com as qualidades necessárias não podia ser procurado fora do Grupo Ismael, o viveiro dos místicos. A organização tinha que ser preparada desde logo pelo Reformador.
Alfredo Pereira não perdeu tempo. Levou a Dias da Cruz, Elias da Silva e Fernandes Figueira a candidatura de Bezerra de Menezes. Inclinaram-se. Era um nome respeitável e um valor indiscutível. Sábio, bondoso, diligente, humilde, possuía ainda a seu favor a velhice, que o cobria de veneração. Foram juntos convidá-lo.
A presidência era naquele momento um verdadeiro presente de gregos.
Bezerra de Menezes desculpou-se, por isso, como pôde. Estava cansado e cheio de obrigações espíritas. Insistiram. Não era um convite, era um apelo. Bezerra salientou então a dificuldade, senão impossibilidade, de acomodar místicos e científicos. Além disso, só compreendia o Espiritismo como complemento do Cristianismo, e era rustanista.
Replicaram que todos confiavam no seu espírito de tolerância e conciliação. Estavam certos de que faria o possível para harmonizar a família espírita dentro dos princípios fundamentais. Entretanto, agiria com plena liberdade e carta branca. Teria poderes discricionários. Faria o que quisesse e até, para ficar inteiramente à vontade, nenhum dos quatro aceitaria qualquer cargo administrativo, continuando embora todos seus amigos e companheiros.
Diante de tamanho cerco, pediu um prazo para responder ao convite, precisando primeiro ouvir o seu guia espiritual. E, com esse intuito, rumou para o Grupo Ismael.
Contou-nos Pedro Richard que, quando findou a prece inicial feita por Bittencourt Sampaio, todos notaram que Bezerra de Menezes tinha as cãs abundantemente orvalhadas de lágrimas, que lhe desciam ainda dos olhos.
Conservou-se comovido durante o recebimento das mensagens psicográficas e foi com voz trêmula que, falando sobre a lição do dia (Parábola da vinha e dos obreiros da primeira e última hora), disse a certa altura o motivo de sua emoção:
— Querem que eu volte para a Federação. Como vocês sabem, aquela velha sociedade está sem presidente e desorientada. Em vez de trabalhos metódicos sobre o Espiritismo ou sob o Evangelho, vive a discutir teses bizantinas e a alimentar o escrito de hegemonia. São poucos os seus sócios e pouquíssimos os assinantes do Reformador. Por maiores que hajam sido os esforços de alguns nada se tem conseguido no terreno duma harmonia de vistas. Não me sinto, por isso, com forças para colocá-la na posição que merece.
— O trabalhador da vinha — disse Bittencourt — é sempre amparado. A Federação pode estar errada na sua propaganda doutrinária, mas possui uma Assistência aos Necessitados, que basta por si só para atrair sobre ela as simpatias dos servos do Senhor.
— De acordo. Mas a Assistência está adotando exclusivamente a Homeopatia no tratamento dos enfermos, terapêutica que eu adoro em meu tratamento pessoal, no de minha família e recomendo aos meus amigos, sem ser, entretanto, médico homeopata. Isto aliás me tem criado sérias dificuldades, tornando-me um médico inútil e deslocado que não crê na medicina oficial e aconselha a dos Espíritos, não tendo assim mais o direito de exercer a profissão.
— E por que não te tornas médico homeopata? — disse Bittencourt.
— Não entendo patavina de Homeopatia. Uso a dos Espíritos e não a dos médicos.
Nisto o médium Frederico Júnior, incorporando o Espírito Agostinho, deu um aparte:
— Tanto melhor. Ajudar-te-emos com maior facilidade no tratamento de nossos irmãos.
— Como, bondoso Espírito!? Tu me sugeres viver do Espiritismo?
— Não, por certo! Viverás de tua profissão, dando ao teu cliente o fruto do teu saber humano, para isso estudando Homeopatia como te aconselhou nosso companheiro Bittencourt. Nós te ajudaremos de outro modo: trazendo-te, quando precisares, discípulos de matemática...
Bezerra compreendeu em que consistiria o auxílio e contou ao Grupo aquele episódio do tempo de estudante, que já narramos. Prometeu aceitar o conselho e estudar e praticar a ciência homeopática. Continuando a falar da Federação disse:
— O convite é insistente e prometi uma resposta para depois de ouvido o conselho de meu querido guia. Pode o bom amigo dizer-me algo a respeito?
— Aceita o convite — respondeu o médium incorporado. — É um chamado. Já te dissemos mais de uma vez que a união dos espíritas e a sua orientação te foram confiadas. Não duvides, nem te preocupes com as dificuldades. Faze o trabalho do homem, sem cuja boa vontade nada podemos.
Cumpre o teu dever e cumpriremos o nosso.
— Neste caso, aceitarei e espero não me faltem o amparo de Jesus, a proteção de nossos guias, assim como o concurso de todos os companheiros de Grupo.
— Iremos todos contigo! — disse o Espírito.