Iremos todos contigo
O leitor talvez não possa compreender sem uma rememoração especial o alcance desta promessa que se cumpriu: "Iremos todos contigo".
O Grupo Ismael (por extenso Grupo de Estudos Evangélicos do Anjo Ismael), em virtude dos acontecimentos já conhecidos do leitor, tornara-se o herdeiro moral e universal da extinta Fraternidade (por extenso Sociedade Espírita Fraternidade) e detinha exclusivamente a bandeira de Ismael, isto é, do guia espiritual supremo do Espiritismo no Brasil, segundo a tradição jamais desmentida.
Esta bandeira, representada pela trilogia Deus, Cristo e Caridade, como já se sabe, foi erguida pela primeira vez em 1874 no Grupo Confucius, de onde saiu para a Sociedade de Estudos Evangélicos, fundada especialmente para defendê-la. Dada a cisão entre "místicos" e "científicos", a bandeira e o estudo sistemático dos Evangelhos passaram com os "místicos" para a Fraternidade, transformando-se a Sociedade de Estudos Evangélicos em Sociedade Acadêmica, para ficar com os "científicos".
Desta forma, o Grupo Ismael era naquele momento a tenda legítima e única onde, segundo as Instruções do Espírito Kardec, deviam os espíritas cristãos ou “Ismaelinos” erguer o templo do Cristianismo Espírita. Portanto, aquela promessa categórica, proferida solenemente pelo Espírito Agostinho, guia espiritual de Bezerra de Menezes, principal fundador do Kardecismo em França e um dos mais estimados guias do Grupo Ismael, tinha uma altíssima significação. Anunciava que a falange de Ismael, representada na Terra pelo seu pequeno grupo, mas formada no Espaço de um forte contingente de Espíritos “cristófilos”, ia com Bezerra de Menezes para a Federação.
Naquela noite memorável de julho de 1895, o que se concluía no Grupo Ismael, à revelia de seus humildes operários, cegos e coxos instrumentos do Invisível, era um tratado espiritual de aliança entre as três mais fortes correntes espirituais que atuavam em nossa terra e cujos polos eram a Federação, o Grupo Ismael e a Assistência.
Bezerra de Menezes ia ser o delegado desta aliança espiritual, à qual ficava daquela hora em diante confiada a bandeira Deus, Cristo e Caridade e a tarefa de erguer sobre os três polos o templo do Cristianismo Espírita no Brasil. Quem ia dirigir a Federação e a Assistência era o Grupo Ismael.
Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos. Foi esse um dos temas estudados naquela noite. Bezerra de Menezes, como exemplo vivo da lição evangélica, havia sido chamado pelos homens, mas já era um escolhido dos Espíritos. Com estas credenciais, que jamais outro presidente havia logrado antes (que saibamos), era natural que as correntes invisíveis, hostis ao plano de Ismael, se agitassem, preparando-se para o combate.
O toque a rebate foi dado pelo Reformador. Antecipando-se talvezDepois de escrita esta crônica, desencarnou, no Rio de Janeiro, uma delas, o dr. Francisco de Menezes Dias da Cruz, porque o general estava escolhido, mas ainda não havia sido nomeado oficialmente pela assembleia, anunciou o combate do editorial de 1° de agosto:
"É para lastimar que, tendo-se difundido admiravelmente no Brasil as ideias espíritas de modo a não haver quase ninguém que não as aceite, seja a sua propaganda feita sem ordem nem sistema".
Era um aviso ao Centro de Propaganda e uma reprovação ao que havia feito até então o partido dos "científicos" na própria Federação. E depois de criticar "os métodos inconvenientes à falta de unidade de vistas e de orientação", esboçou um plano de luta, como veremos.
O leitor desta crônica viu que a renúncia do presidente Júlio César Leal e a recusa por parte do vice-presidente Dias da Cruz de assumir a direção na forma dos estatutos, provocaram a crise que permitiu aos místicos dominarem a Federação. Viu também que, antes mesmo da posse legal do presidente Bezerra de Menezes, deram eles, pelo Reformador de 1° de agosto de 1895, um sinal de combate sectarista.
Assim foi. Esses apóstolos de Ismael estavam decididos, sob a inspiração de Espíritos cristófilos, a romper de frente com os adversários de seu misticismo. E a conquista inesperada da Federação — a sociedade mais conhecida dentro e fora do país — foi recebida como sinal de que a hora de principiar a luta de hegemonia doutrinária, anunciada havia cinco anos, tinha chegado. Hora providencial e decisiva, era imprescindível aproveitá-la em todos os minutos, desde os primeiros. Por isso não aguardaram o cumprimento da formalidade estatutária, que se daria em 3 de agosto, data marcada para a eleição de Bezerra de Menezes. Encetaram desde logo a propaganda de suas ideias. Estas não eram mais as ideias espíritas primitivas, como brotavam dos trabalhos de Allan Kardec. Não se radicavam na singeleza do Cristianismo espírita segundo o kardecismo. Vinham de uma concepção particular da finalidade do Espiritismo, no mundo inteiro e particularmente em nosso meio.
A primeira necessidade da arrancada estava satisfeita. A Federação, até aquele momento uma estéril sociedade de livres estudos espíritas, ia ser transformada numa cidadela de espíritas evangélicos, orientados por uma falange mística. As demais necessidades seriam vencidas facilmente, uma vez que consideravam, na sua fé ardente, o lábaro Deus-Cristo-Caridade como um novo “in hoc signo vinces” “Com este sinal você vencerá”. Hasteada esta bandeira na Federação, a capital do mundo espírita brasileiro, era quase arvorá-la em todos os grupos, bastando para isso uma propaganda sistemática pelo Reformador.
Desse entusiasmo resultou que, mal haviam obtido a aquiescência de Bezerra de Menezes — o chefe de prestígio moral e intelectual para uma campanha de tão vasta envergadura contra o Espiritismo científico — logo trataram de divulgar o que pretendiam fazer. Por isso, o editorial do Reformador de 1° de agosto de 1895 é considerado uma verdadeira plataforma.
Foi com ela que se estrearam os místicos. A sua leitura é imprescindível para quem deseje entrar no exato conhecimento da reforma espírita realizada sob a direção de Bezerra de Menezes. Não a daremos, entretanto, sem algumas observações postas sob as principais passagens.
Esses comentários refletem, debaixo da análise do cronista, a crítica contemporânea, chegada a nós pela imprensa e, sobretudo, pela tradição das testemunhas mais notáveis, algumas ainda vivas neste momento.*
*- Depois de escrita esta crônica, desencarnou, no Rio de Janeiro, uma delas, o dr. Francisco de Menezes Dias da Cruz.
Assim começava a plataforma: "É para lastimar que, tendo-se difundido admiravelmente no Brasil as ideias espíritas de modo a não haver ninguém que não as aceite, seja a sua propaganda feita sem ordem nem sistema".
Os místicos principiavam, como se vê, por uma crítica à orientação de todos os grupos e sociedades, sem excetuar a Federação. Davam, porém, no fundo de seu pensamento, um ataque em cheio e inesperado ao Centro de Propaganda, reduto dos "científicos", que funcionava desde 24 de maio na rua Visconde do Rio Branco n° 67. A finalidade deste Centro, como o próprio nome indica, era propagar o Espiritismo, mas a propaganda se fazia sem ordem nem sistema. A crítica pareceu a muitos improcedente. Se as "ideias espíritas", já "difundidas admiravelmente", deviam doravante ser divulgadas, não mais em sua espontaneidade, como se vinha fazendo, mas com "ordem e sistema", era óbvio que os místicos pretendiam regulamentar a propaganda e defender um sistema. Ora, sistema, na boca dos místicos, equivalia a sectarismo. Estabelecer um, seria condenar os demais. No consenso geral dos adeptos fiéis a Kardec, o que mais importava, no meio brasileiro, ainda não emancipado dos preconceitos católicos e do fetichismo indo-africano, não era divulgar este ou aquele sistema espírita — fruto de concepções humanas — mas espalhar as ideias espíritas em sua singeleza, isto é: a crença na imortalidade da alma, a verdadeira natureza dos Espíritos, as suas relações com os homens pela mediunidade, as suas revelações mais universais sobre Deus, a justiça divina, a reencarnação, etc. O propagandista, que tenha em mente o bem geral e não o triunfo de uma determinada seita, deverá agir como o semeador da parábola evangélica.
Cumpre-lhe divulgar as ideias, os princípios fundamentais. O trabalho de defender uma certa doutrina pertence à outra categoria de missionários. A dos que chegam depois de feita a seara para a colheita e a seleção. O bom semeador de verdades novas não deve contrariar as leis e os Profetas de religião nenhuma.
Imitando o da parábola, lançará de passagem, à esquerda e à direita, a sua boa nova, para que medre, cresça e frutifique segundo a natureza do terreno onde cair, isto é, no caso das ideias espíritas, conforme os sentimentos de cada coração e os conhecimentos de cada cérebro. Parecia, portanto, a uma grande ala de propagandistas, que nada havia a lastimar da aparente desordem e da falta de sistema na vulgarização do Espiritismo, tanto mais que vinha produzindo frutos, que a própria plataforma registrava com admiração.
"Nos Estados — continuava o editorial — há grupos dispersos... Na Capital as associações estão desligadas... Empregam-se, nos Estados principalmente, métodos inconvenientes, tudo à falta de unidade de vistas... Cada grupo tem a sua orientarão"... etc.
A crítica não parecia também procedente neste ponto, uma vez que tal situação derivava da maneira de propagar, acima comentada. Nada mais natural do que se formarem grupos de acordo com a orientação dos diretores. A dispersão era inevitável e o será sempre, enquanto a necessidade de defesa da liberdade de crer não se tornar imperiosa diante de uma política hostil e perseguidora. Só a política, e jamais a convenção particular, fará com que um dia, se Deus tiver marcado essa hora para a Humanidade, se unam os grupos espíritas numa só nacionalidade, como aconteceu ao judaísmo, ao Cristianismo, ao Islamismo, a Xintoísmo e a todas as seitas combatentes. Os métodos de trabalho, por sua vez, não devem ser criticados como grosseiros ou primitivos.
Dependem da ilustração dos diretores de grupos e são conforme as necessidades do meio onde proliferam. Na sua diversidade está a sabedoria divina. As manifestações dos Espíritos, por uma lei eterna e imutável, estarão sempre de conformidade com o círculo em que se derem. Se essa lei de afinidade fosse um mal, a natureza não baseava nela a multiplicidade de suas obras.
Mas vamos dar de barato que, em matéria de Espiritismo, não deva prevalecer a lei divina e sim a da unidade de vistas e de orientação idealizada pelos místicos. Nesta hipótese, de onde a orientação espírita deveria partir para manter perpétua a unidade de vistas: da ciência ou do misticismo? A Doutrina espírita contém em seu próprio seio a resposta, formulada pelo seu fundador. A humanidade, à medida que progride, cada vez mais se afasta do misticismo em busca da realidade científica. E mesmo quando penetra o campo da fé é com a ciência que deseja examinar os princípios fundamentais da Doutrina. Se, no futuro, depois de reduzida a mais completa ruína a atual civilização, surgir um Regenerador, que venha inaugurar a Nova Era, como se anuncia, somente uma religião baseada na ciência ligará todos os homens numa só verdade.
"Tudo progride e parece-nos que já é tempo de entrar o Espiritismo, entre nós, em nova fase analítica de que deverá subir à sintética, que unificará o Espiritismo do Brasil com o de todo o mundo".
Eis aí o ponto nevrálgico da plataforma. Era preciso criticar os costumes para regenerá-los. Os místicos tinham em vista dar novo molde ao Espiritismo brasileiro a fim de ligá-lo um dia ao Espiritismo universal. Que seu intuito era de reformas, nenhuma dúvida seria possível ante o sentido de suas palavras. De fato, que se podia entender por uma "nova fase analítica", que haveria de surgir a unidade da doutrina espírita? Dentro da lógica, fase analítica, se estamos certos, é aquela em que o conhecimento paira sobre os princípios, sobre cada um dos princípios, isoladamente, tomados em seu valor próprio. Inversamente, fase sintética é aquela em que o conhecimento não se debruça mais sobre o princípio, destacado, mas sobre o conjunto deles, procurando uma generalização. São as duas velhas operações que o Espírito emprega para adquirir conhecimento.
Segundo o método clássico, o conhecimento de uma coisa-em-si — a qual os filósofos chamam um nômeno — vem depois do exame parcelado de todos os seus efeitos, ou fenômenos. Assim sendo, forçoso era admitir que os místicos consideravam chegado o tempo, "entre nós", de se proceder à nova análise dos fenômenos espiríticos para se estabelecer, em seguida, nova síntese. Isso importava, nada mais e nada menos, em declarar que a síntese de Allan Kardec estava, senão em caducidade, por força em insuficiência. Bem se pode imaginar o arrepio que tal suspeita provocou nos kardecistas, para os quais a obra genial do codificador do Espiritismo era uma relíquia sacrossanta. O propósito reformista dos místicos tornou-se-lhes alarmante. Tentavam organizar um novo Espiritismo!
"Para passarmos do estado de confusão, em que nos achamos, ao de ordem bem regulada, para chegarmos ao de sistema, que será o último trabalho humano, faz-se mister uma série e bem compreendida organização."
Que se tinha em vista a reforma do kardecismo, nenhuma dúvida podia haver diante desta passagem. Sem qualquer equívoco, os místicos pretendiam acabar com o "estado de confusão", em que todos se achavam no regime da Doutrina dos Espíritos, levando os espíritas, por mais divergentes nos seus sentimentos e nos seus conhecimentos, a um regulamento, isto é, a uma "ordem bem regulada". E esse regulamento não seria de caráter transitório, nem progressivo, mas definitivo, por isso que o sistema ideado pelos místicos "será o último trabalho humano".
Examinemos imparcial e friamente os principais aspectos dessa proposição. Em primeiro lugar, "organizar" não é senão reunir esforços de muitos sob o comando de um só. Não há organismo normal com mais de uma cabeça. Cada cabeça, cada organismo. Logo, "séria organização", como queriam, seria, afinal de contas, direção única e obediência geral — o grande sonho de todos os tiranos. Os grupos e as sociedades teriam, portanto, de fazer parte duma única aliança, perdendo a autonomia e independência em matéria de externação da Doutrina, para que por toda a parte prevalecesse, imperialmente, uma só ortodoxia. Em segundo lugar, a nova teologia espírita não seria mais a de O Livro dos Espíritos, ou Doutrina Espírita propriamente dita, nem a dos mais livros de Kardec, ou Doutrina Kardecista, ou, ainda, Espiritismo Aplicado, mas a que fosse constituída expressamente pela nova síntese, que seria tirada após uma nova análise dos fenômenos espiríticos. Em terceiro lugar, "ordem bem regulada" só poderia ser aquela que derivasse de decretos, de imperiais "ordenações" para o bem geral. Importava, consequentemente, na existência de uma autoridade. Nem o relegado Kardec tão injustamente acusado, no seu tempo, de pretensão pontificial sonhou com tamanho poder, quando pensou na organização espírita. Um regulamento dessa natureza autoritária exigiria, preliminarmente, a exemplo do que fizeram as religiões de autoridade, a interdição do comércio com os Espíritos.
Nada, portanto mais contrário à índole do Espiritismo. Nada mais impossível. A propaganda eficiente das ideias espíritas depende muito menos dos homens do que dos Espíritos, que sopram onde podem como podem, não segundo a vontade dos homens, mas da Inteligência que dirige o mundo.
Dependesse ela embora só dos homens a ainda assim seria grande erro admitir que os Espíritos por amor de um centro humano, se submetessem todos ao regulamento autoritário que o centro lhes ditasse. Tampouco se devia supor que os homens aceitassem facilmente uma tal sujeição de consciência. Não se podia olvidar que são justamente os rebelados contra as disciplinas religiosas, contra o autoritarismo infalível, contra o Crê ou Morre, contra a prisão da fé, os que se tornaram espíritas. Como impor novo jugo a essa gente revoltada, que já lançou fora a canga antiga? Como sujeitá-la a um novo báculo depois que abandonaram o de seu primeiro pastor? Em derradeiro lugar, "ordem bem regulada" haveria de ser um código de ética espírita. Sua eficiência dependeria das sanções. Quem as imporia aos faltosos? Em que consistiriam elas? Naturalmente, um pontífice.
Naturalmente, a excomunhão. Ainda que um dia, para castigo dos homens, um código dessa natureza viesse a ser decretado, as leis naturais, que regulam o comércio com os Espíritos, não seriam alteradas, como não o foram no passado.
As manifestações continuariam, como sempre, formando-se, no silêncio e na penumbra, as dissidências ocultas, muito mais perigosas para as ortodoxias, porque arrebanham pela qualidade e não pela quantidade.
"Sem harmonia de ação, sem o concurso harmônico dos grupos entre si, o Espiritismo não fará mais progresso no Brasil, não passará de uma crença sem base, variante de indivíduo a indivíduo."
A variabilidade do Espiritismo segundo a pessoa e o meio, tão natural e necessária à harmonia geral, não podia agradar aos sectaristas. Os místicos investiram contra ela, mirando apenas à harmonia particular mais conveniente à sua seita. O progresso, a que se referiam, não era do Espiritismo antigo, kardeciano, mas do neoespiritismo, que desejavam divulgar. Esse, na verdade, tendo uma base invariável, não se poderia propagar "sem harmonia de ação, sem o concurso harmônico dos grupos". Qualquer divergência na propaganda provocaria o fracasso do sistema, ou criaria heresias. O neoespiritismo dos místicos, para fazer progresso no Brasil, teria de contar com uma disciplina figarosa, capaz de fazer de cada adepto um fanático. E que base invariável seria essa, afinal? Os místicos não a revelaram expressamente porque toda a gente sabia que era o Evangelho.
"A união faz a força. Organização e organização, é a palavra que parte de todos os lábios, é a ideia que paira em todos os pensamentos, porque é chegada a hora de passarmos da fase sincrética à fase analítica, como acima indicamos."
Estavam resolutos. Era verdade que, desde há muitos anos, se falava numa organização do Espiritismo entre nós. É, aliás, a preocupação de todos os que se agrupam: universalizar o seu grupo. Todas as sociedades querem a união em torno de si. Por quê? Para adquirir a força. Seria um erro, pois, supor que estava generalizada a ideia de se liquidar com o ecletismo doutrinário. O que se queria era acabar com a liberdade alheia de entender e praticar o Espiritismo. Os místicos supunham chegada a hora de suplantar o ecletismo com a sua nova síntese. Mas sabiam que a própria solidariedade entre os crentes, tão útil para enfrentar os inimigos comuns, não podia deixar de ser partidária. A harmonia entre os espíritas pela mútua tolerância, tão necessária à vitória da causa comum, não era admissível com "adversários". Na hora da luta não se pensa em paz. Só os vencidos a pedem. O povo espírita não clamava a una você que o privassem da experiência pessoal, que lhe restringissem o direito de investigar, que o proibissem de discutir, recusar ou aceitar o que quer que fosse. Os místicos queriam, entretanto, tentar a execução de seu plano e não podiam deixar de apelar para a necessária união. Estavam no seu direito.
"Aceitamos, pois, de boa vontade, como nos cumpre, as inspirações que nos dão os prepostos do Senhor, incumbidos de desenvolver o Espiritismo no Brasil. Organizemos".
Neste trecho final encontrava-se o busílis da plataforma. "Aceitavam de boa vontade a missão que supunham ter recebido dos prepostos do Senhor.
Estava o busílis porque todos sabiam que, desde o Grupo Confucius, se anunciava haver um certo número de Espíritos encarregado do desenvolvimento do Espiritismo em nossa terra. Esses prepostos, chefiados por Ismael sustentavam que o Brasil era a terra eleita do Evangelho e, portanto, nenhum Espiritismo poderia nele dar bons frutos se não tivesse como base a Palavra Eterna. Muitos aceitaram essa revelação. Outros a recusaram, considerando-a sectária e oposta à finalidade universalista da Doutrina Espírita. Os que a aceitaram apegaram-se ao estudo dos Evangelhos. E como O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Kardec, era um comentário, não aos evangelhos, mas aos princípios basilares da doutrina de Jesus mais conformes aos ensinos dos Espíritos, e não era, além disso um comentário feito pelos Espíritos e sim uma aplicação devido ao gênio do autor, buscaram uma obra mais vasta e mais espirítica. O livro de Roustaing chegara ao Brasil muito cedo, quase ao mesmo tempo que os livros de Kardec. Os espíritas evangélicos mais cultos, à frente dos quais se achava o mais erudito de todos — Bittencourt Sampaio —, tomaram Os Quatro Evangelhos como vade-mécum e o levaram à altura de última palavra sobre doutrina de Jesus. O livro de Roustaing apresentava o mesmo valor doutrinário de O Livro dos Espíritos, isto é, ambos atribuíam o que estava escrito a uma revelação ditada. Mas tinha sobre a obra de Kardec uma vantagem para o crente: todas as explicações eram dadas como advindas dos próprios evangelistas, assistidos pelos Apóstolos e estes, a seu turno, assistidos por Moisés. Os crentes dispensam em regra as provas. Contentam-se com a presunção de boa fé. O rustanismo pôde assim, graças à tolerância dos Espíritos evangélicos, ganhar adeptos entre os místicos. Se jamais os prepostos e muito menos o seu Chefe afirmaram que na obra de Roustaing estava o verdadeiro sentido da vida e doutrina de Jesus, também jamais fizeram uma assertiva em contrário. Mesmo porque, se tal fizessem, perderiam o tempo e a simpatia do fanático, e apagariam uma fé bruxoleante, que cumpre alimentar cuidadosamente. A obra de Roustaing concorreu, entretanto, para dividir os crentes e criar dificuldades invencíveis à desejada harmonia de vistas. Os espíritas cristãos passaram a formar dois grupos bem distintos: os kardecistas e os rustanistas. Os primeiros tinham Deus como único Senhor, causa primeira de todas as coisas, e recebiam Jesus como irmão, a quem denominavam Espírito Verdade. Não davam ao Cristo quaisquer característicos de deidade, não o consideravam, absolutamente, como os rustanistas, "a maior essência espiritual depois de Deus". Os outros, porém, consideravam Jesus o Senhor, igualando-o a Deus. Distinguiam o Pai e o Filho, mas lhes atribuíam uma única deidade, ainda que rejeitando a consubstanciação dos teólogos. Veneravam, além disso, uma Senhora, a cuja intercessão apelavam de preferência. Além dessa divergência capital, alimentavam outras, entre as quais avulta a que discutia a natureza da carne de Jesus. Os kardecistas negavam e os rustanistas aceitavam a hipótese dos docetas.*
* - A primeira heresia do cristianismo foi o docetismo, nome com que Serapião, bispo da Antioquia, no século segundo, designou os adeptos da teoria da vida aparente de Jesus, em oposição aos sacorgenistas, que acreditavam no nascimento, vida e morte humana do Messias. Foi também a primeira heresia do Cristianismo espírita.
Ora, como a Federação ia ficar nas mãos dos adeptos do rustanismo, compreenderam os kardecistas e os espiritistas puros que teriam, mais cedo ou mais tarde, de se retirar e lutar contra ela por causa da desinteligência de princípios. A plataforma foi, por essa razão, recebida como um sinal de guerra.
Com a promessa de formar um novo Espiritismo baseado do Evangelho, o que naturalmente os místicos iriam impor com o tempo pela propaganda sistemática e regulamentada seria, nem mais nem menos, o rustanismo.
O célebre editorial, que tantos comentários provocou, como procuramos mostrar, terminava com estas palavras:
"Para organizarmos é preciso, primeiro, ligar em uma grande falange os trabalhadores; segundo, regularizar metodicamente o seu trabalho. No próximo número daremos o plano de organização."
Foi ao seu tempo, como dissemos, um aviso de luta. Na opinião geral, se os místicos conseguissem ligar uma grande falange, adeus Espiritismo científico!
No dia 3 de agosto de 1895, realizou-se, na sede social, às 8 horas da noite, uma assembleia geral com a presença de vinte místicos e dois científicos. A reunião havia sido convocada, não só para a eleição de Bezerra de Menezes, mas, por proposta deste, para o exame da situação financeira da casa e conhecimento da nova orientação na propaganda.
Bezerra de Menezes presidiu a sessão. Discutindo a crise monetária da Casa, um dos científicos procurou ferir a probidade de um dos mais dignos sustentáculos e ornamentos da Federação antiga, a quem se devia em grande parte o seu ressurgimento. Era uma clamorosa injustiça. A revolta geral abafou o orador, que perdeu o entusiasmo com que viera talvez para combater a nova orientação. Serenados os ânimos, foram aprovadas as medidas de emergência praticadas pela anterior administração e dados poderes discricionários ao novo presidente. A eleição foi simples e rápida. Bezerra de Menezes obteve 19 votos e, por proposta de Elias da Silva, foi considerado empossado.
O presidente expôs o seu pensamento. Recebia a Federação, do ponto de vista material, despida dos recursos mais urgentes, sem verba sequer para o aluguel. Queria recebê-la também, do ponto de vista espiritual, sem quaisquer compromissos de ordem doutrinária. Era, portanto, no duplo sentido, uma reorganização, que lhe cabia fazer. Precisava de carta branca, mas lhe era indispensável o concurso de todos os seus amigos. Contava com a dedicação dos crentes e apelava para que nenhum desertasse na hora em que se ia travar uma luta por Jesus. Não só a Federação, mas o Espiritismo, no Brasil, precisava de um chefe. Que chefe maior, mais seguro, mais infalível poderiam todos almejar do que Jesus, o Senhor e Mestre de quem seria mero servidor? A liberdade de ação, que lhe era outorgada, não serviria jamais para impor a sua vontade pessoal, nem para exercer uma autoridade, que não tinha. Dado o novo rumo que ia imprimir à Casa, os estatutos estavam praticamente abrogados (anulados). A vida social teria de ficar subordinada à nova era, que raiava para a Federação. Ficavam extintas as sessões de puro academicismo, em que eram discutidas teses glaciais, que só serviam para enfraquecer os laços de solidariedade entre os homens, laços que surgem quando há interesses doutrinários comuns. Voltava a ter lugar, uma vez por semana, a sessão pública, que instituíra em 1890, destinada ao estudo sistemático e graduado da Doutrina Espírita, sobretudo do Evangelho. A sessão seria às sextas-feiras, às 9 horas da noite. Todas as deliberações seriam publicadas no Reformador, quando tivessem um interesse geral. Por fim, agradecendo a boa vontade dos companheiros, fez uma prece de graças a Deus, a Jesus e a Maria, encerrando a sessão.
E assim como um dia sucede ao outro, mudou-se o rumo da Federação.
O Reformador, no "Noticiário" de 15 de agosto concluiu a nota sobre a assembleia com estas palavras, cujo sentido hoje pode ser bem compreendido pelos que consideram os homens meros instrumentos da Grande Vontade invisível:
"A Federação tem tudo a esperar do seu novo presidente e pensa que, se o apoio e a boa vontade dos nossos irmãos se fizerem efetivos e reais, em breve tempo ela se terá firmado e engrandecido, nesta nova fase em que em boa hora entrou."
Era a fase dos místicos, que dura até hoje.