Adolfo Bezerra de Menezes
No Brasil nenhum outro espírita ainda se destacou mais que Bezerra de Menezes, o consolidador da Federação Espírita Brasileira e o orientador e chefe do Cristianismo espírita entre nós.
Bezerra de Menezes nasceu no dia 29 de agosto de 1831, na freguesia do Riacho do Sangue, Estado do Ceará, recebendo a pia batismal do catolicismo, dias depois, o nome de Adolfo. Aos 6 anos sabia ler, aos 7 iniciava o curso primário, na Vila do Frade, aos 11 principiava o curso de Humanidades, em Imperatriz. Seu aproveitamento era notável, bastando lembrar que aos 13 anos, foi professor de latim na própria escola em que fazia seus preparatórios.
Orientava-o, nos estudos, o tio e grande amigo Dr. Manoel Soares da Silva Bezerra. Decorridos os cinco anos de ginásio, embarcou, em 5 de fevereiro de 1851, com destino à Corte, para se matricular na Escola de Medicina. Chegou ao Rio de Janeiro sozinho, com 20 anos, no bolso 38$000 e no espírito uma esperança imensa.
Como todo moço do interior nordestino, trouxe consigo um catolicismo eivado de fatos espíritas. O folclore brasileiro está repleto de crendices “espiritóides”. Desde criança ele ouvia a narrativa de aparições de almas, de manifestações do diabo, de casas mal-assombradas. Não eram só os sertanejos que lhe contavam essas histórias. Pessoas gradas também.
"Quem escreve estas linhas", disse ele (Reformador, 1 de agosto de 1890), "criou-se em meio do povo sertanejo até a idade de 18 anos e guarda daqueles tempos e lugares a mais viva memória, qual não pôde conservar de fatos ulteriores".
Aos 7 anos, ouviu de pessoas conceituadas que as almas dos mortos vinham a este mundo visitar os vivos. Em 1840, em sua casa, na freguesia do Riacho do Sangue, o Dr. Antônio Leopoldino de Araújo Chaves, juiz de direito de Quixeramobim, contou um caso estranho que se passara com conhecida moça.
Uma possessão, que durou dias e resistiu ao exorcismo do padre Frutuoso.
"Devo declarar", diz Bezerra (Reformador, 1 de agosto de 1890), "que eu era bem menino quando a ouvi; mas, alguns anos depois, tive a ratificação do padre Frutuoso, na Capital. Naquele tempo e principalmente entre gente ignorante, vigorava a ideia de que era demônio que fazia aquelas artes, por isso, tanto o juiz como o padre contavam o fato como prova do poder do diabo de entrar no corpo de um ser humano".
Durante os primeiros tempos, continuou na crença e prática religiosas que trouxera do berço, mas na convivência dos colegas, livres-pensadores e ateus, principiou combatendo-os e acabou concorde com eles, "por não ser firmada na razão a minha fé. A mudança, porém, não foi radical: nunca pude banir de todo a crença em Deus e na alma. Tive "dúvida", fiquei "céptico", mas no fundo era deísta e animista". (Reformador 15 de julho de 1892)
Pobre, precisando lecionar para sustentar-se, passando às vezes grandes privações, a fé em Deus e a prece diuturna o amparavam nos momentos mais difíceis. Estudava pelas bibliotecas e comprava livros de segunda mão. Mantinha, entretanto, linha de conduta impecável não só como cidadão, mas sobretudo como estudante. Forte, corado, olhos meigos e inteligentes, sorriso bondoso, gestos elegantes e nobres, palavras meditadas e filosóficas, foi sempre um conselheiro e um guia, desde os primeiros tempos. Preparava-se para ser chefe entre seus pares. Sua nota de exame era habitualmente optima cum laudare.
Apesar de poucos recursos, não gostava de morar em república de estudantes. Vivia comumente só, em quarto modesto, e tinha pequeno número de amigos. "Eu sinto uma saudade", escreveu ele (Casamento e mortalha), "doce como os eflúvios que arranca do coração o toque da "Ave Maria" no campanário do sertão, triste como o gemido da rola a prantear a perda do terno companheiro! Eu sinto minha alma, arrebatada nas asas do pensamento, rir e chorar, em êxtase de poética melancolia, toda a vez que me vem à mente uma recordação dos meus tempos de estudante, dessa quadra da vida em que tudo são flores, porque os espinhos estão guardados para o fim. Repassava eu pela memória as cenas desses felizes tempos e eis que de lindo jardim se destacam e vêm a mim dois vultos de moços, que foram meus melhores amigos na Faculdade de Medicina, onde junto estudamos. Já lá vão anos e anos! Já ninguém se lembra mais dos dois astros que fulguravam na ciência e na literatura! Já só guarda lembrança de sua passagem por nossa sociedade este velho perdido para a terra, que parece ter tido por missão cerrar os olhos aos companheiros de jornada, esperando que lhe cerrem os seus os filhos da nova geração. Antes que chegue esse dia, para tantos pavoroso e para mim auspicioso, quero dizer ao leitor a história dos dois moços, que acudiam à minha evocação do passado, meus caros companheiros, que trocaram as alegrias deste vale de lágrimas pelas lágrimas do vale de alegrias".
A esses dois amigos ele emprestou qualidades, pensamentos, atitudes, que foram dele próprio. Através do enredo podemos bem ver o estudante Bezerra, tal como ninguém melhor poderia descrevê-lo: "Separamo-nos exclusivamente preocupado com os preparativos para a viagem e, porventura, com o modo de arranjar dinheiro para fazê-la. Era pelo menos neste ponto que eu sentia o engasgo. Dividindo meu tempo pelo estudo e pelo trabalho de ganhar o pão, tinha por via de regra a bolsa a tocar matinas. O que me valia era o alfaiate, a quem pagava um tanto por mês pela roupa que lhe mandava fazer e que, por minha pontualidade no pagamento, me supria de vez em quando nos meus maiores apuros, uns vinte até trinta mil-réis, que nunca mais do que tanto lhe pedi. Mas agora precisava de cinquenta mil-réis, pois tinha de comprar botinas e chapéu e alugar, ida e volta, um rocinante. Oh! Como me batia o coração à ideia do homem abanar-me a cabeça! Além do vexame, o pesar de não ir à festa do Cardoso, em casa do tio Anselmo, onde já vi pelo pensamento brilharem duas estrelas: os olhos da prima Getrudinha. Só esta perspectiva me decidiu na tremenda luta de ir ou não ir ao meu banqueiro. À porta ia recuar, entendendo que era melhor não me expor a uma vergonha e, mesmo na melhor hipótese, não contrair uma dívida, que me cativaria por muito tempo. Mas o caixeiro, que me conhecia, veio a mim saber o que queria. "Alea jacta est" Vencer ou morrer.
Perguntei-lhe: O Sr. Faria está? — Respondeu-me ele: "Embarcou ontem para a Europa, mas, se precisa de alguma coisa, está aí o contramestre". Foi uma punhalada, que me dissipou as fumaças de flamejar no Itaboraí; mas foi ao mesmo tempo um calmante para minha agitação, quer de passar por uma vergonha, quer de contrair uma dívida, que é sempre um cancro, de que poucos, quando se torna um hábito, se salvam. Dever, para quem se presa, é sempre uma escravidão moral, que se não resgata senão por sacrifícios e que perturba a alma durante toda a sua permanência. Dei costa a casa, onde ia prender grande parte do meu futuro, porque cinquenta mil-réis, para mim, eram tanto como cinquenta contos para outros. Voltei mais alegre do que triste, lembrando-me do que ouvia à minha Mãe: "Boa romaria faz quem em casa fica em paz".
Certo dia, em que tivera de pagar à Faculdade a taxa de exame para não perder o ano, ficara limpo e com o aluguel do quarto vencido. O senhorio, que conhecia por longa experiência a força e a lábia dos estudantes, era atrevidaço.
Bezerra não tinha livro vendável para levar ao "sebo", nem joia a pôr no "prego".
Sensitivo, brioso e impulsivo, disfarçava a angústia numa esperança sem revolta, confiando a Deus o que lhe viesse em prova de sua virtude. Bateram à porta. O seu coração agita-se, como se fora criminoso procurado pela polícia. O espírito conturba-se pelo receio de não saber se ouviria resignado, sob o ardor da vergonha, a ameaça grosseira do cobrador. Mas abre a porta resoluto. Era um moço que o vinha procurar para lições de matemática, justamente a matéria que Bezerra detestava. O novo aluno, enquanto ele hesitava em aceitá-lo, tirou a carteira do bolso e disse:
— Como posso esbanjar a mesada e preciso das suas lições, vou pagá-las adiantadamente.
E ato contínuo meteu nas mãos de Bezerra certa quantia e partiu, prometendo vir à hora marcada para a lição. Bezerra, que não tinha livros sobre a matéria, saiu para ir estudar o ponto à Biblioteca Pública, passando pela casa do senhorio. O moço não veio à hora. Nunca mais lhe apareceu. Bezerra, que lhe não pedira sequer o nome, jamais o reviu na vida e dizia, como filósofo:
— Foi a única vez em que estudei a fundo uma lição de matemática e ela me valeu de alguma coisa.
Concluiu o curso aos 25 anos, em 1856.
Abriu com um colega consultório no centro do comércio, onde esteve espantando moscas longos meses. Mas, em sua casa, a clínica ia crescendo, pois era de gente que não paga.
"Foram caindo na rede alguns peixinhos, mas, coitadinhos, tão magros, que não davam para a consoada dos rapazes." O Dr. Manoel Feliciano Pereira de Carvalho estava chefiando o corpo de saúde do Exército e o convidou para médico militar com o posto de cirurgião tenente, dedicou-se então à cirurgia, em que chegou a ser notável. No ano seguinte, 1857, foi recebido como sócio efetivo da Academia Nacional de Medicina, à qual apresentou uma Memória, considerada excelente.
Eleito redator dos seus Anais, durante quatro anos conservou com brilho o honroso posto. Não abandonou, entretanto, a sua clientela pobre. Ela foi ao contrário crescendo ao ponto de não lhe dar tempo para comer: se não lhe pagava, dava-lhe "o mais glorioso dos títulos: o médico dos pobres".
A pouco e pouco foi a fama realçando o seu nome e o escritório da cidade passou a render. Ganhava aqui para despender lá "tão exatamente que, ao chegar o fim de ano, o balanço acusava grande lucro, mas o cofre estava tísico". O coração, porém, estava contente e a consciência nadando em alegria. "Oh! Esta exultava, banhada num oceano de eflúvios tão leves, tão límpidos, como deve ser o ar que respiram os habitantes dos mundos celestiais." Encontrava satisfação em não ter dinheiro para ir ao teatro por havê-lo gasto com os pobres. Não ia "ouvir a Lagrura, a Charton, o Tamberlick espalharem as harmonias divinas das composições de Verdi ou de Bellini", mas sentia soar-lhe "aos tímpanos acordes muito mais arrebatadores do que os do Trovador, muito mais dolentes do que os de Norma". Não se negava a ver um doente, onde quer que ele se achasse, nos morros, nas praias, quer chovesse, quer fosse a desoras. Ele mesmo se definiu:
"O médico verdadeiro é isto: não tem o direito de acabar a refeição, escolher a hora, de inquirir se é longe ou perto... O que não acode por estar com visitas, por ter trabalhado muito e achar-se fatigado, ou por ser alta noite, mau o caminho ou o tempo, ficar longe, ou no morro; o que sobretudo pede um carro a quem não tem com que pagar a receita, ou diz a quem lhe chora à porta que procure outro — esse não é médico, é negociante de medicina, que trabalha para recolher capital e juros dos gastos da formatura. Esse é um desgraçado, que manda para outro o anjo da caridade, que lhe veio fazer uma visita e lhe trazia a única espórtula que podia saciar a sede de riqueza do seu espírito, a única que jamais se perderá nos vaivéns da vida".
Casou-se por amor. A esposa querida passou então a oferecer o melhor de sua vida. Queria dar-lhe conforto, alegria, posição social, felicidade, enfim. Não lhe faltavam recursos intelectuais e morais para isso a par de grande capacidade de trabalho. Pensando nela, fazia literatura. Gostava de escrever.
Conhecido o seu grande prestígio sobre a massa como "médico dos pobres" e "jornalista elegante", não tardou a ser namorado pela Política. Um dia um dos chefes cariocas entrou pelo seu consultório adentro e à queima roupa, sem circunlóquios, lhe ofereceu um lugar na chapa liberal. O pleito ia ser caloroso e as forças políticas, liberal e conservadora, se igualavam. Era no tempo em que um voto podia fazer pender a balança.
Bezerra teve o pressentimento do perigo a que a serpente o arrastava. Mas sua esposa adorada viu com orgulho o convite. E o fruto, que lhe haveria de amargar a vida, foi provado. Era em 1860. Bezerra tinha 29 anos, idade em que principia a pujança mental.
Eleito pelos liberais de São Cristóvão, seu diploma foi impugnado por Haddock Lobo, chefe do partido conservador, sob o pretexto de ser Bezerra um militar. Foi o primeiro choque. Estava em jogo de um lado a garantia do seu lar, um emprego vitalício, e doutro lado uma posição política talvez efêmera, dispendiosa e combatente. O lar! Num gesto repentino, renunciou ao posto militar, trocando a segurança pela incerteza.
E lançou-se à luta com ferocidade inesperada. A campanha, que acendeu, fez arder-lhe todas as qualidades. Batalhador violento e irreverente, contra ele voltaram-se os ódios do partido conservador. Era o alvo. Os mais bárbaros adjetivos passaram desde então a acompanhar o seu nome nas verrinas da imprensa. Mas estava à altura da situação.
Orador de argumentos formidáveis e recursos fortes, de atitudes definidas e inflexíveis, seu caráter era indobrável e essa independência o tornava a melhor tábua de lavar roupa suja política. Pôde triunfar durante todo o mandato, que lhe foi renovado. Não recusava a pugna. Não o entibiavam os ataques. Mas quase renunciou a tudo um dia. Um dia cruel para seu coração amoroso. Em menos de 20 horas, a esposa o abandonava para sempre, deixando-lhe dois órfãos, um de 3 anos e outro de um. "As glórias mundanas, que havia conquistado mais por ela do que por mim, tornaram-se-me aborrecidas senão odiosas…" (Reformador, 15 de julho de 1892)
Conseguiu vencer a crise. Todavia, ao voltar à luta política, já era outro homem. Havia ficado religioso, como veremos adiante.