11 maio 2023

Apreciações


À distância do Brasil, em outro tempo, vazia não era a nossa admiração pelo gigante da América, que se ergueu, há quatro séculos, sob o signo do Cruzeiro, para desempenhar expressiva missão no concerto dos povos civilizados.
Partilhando-lhe a obra de fundação com os expatriados da antiga Corte Portuguesa (*), embora me recolhesse ao mundo britânico, pelas bênçãos da reencarnação, no século XVIII, não me foi possível sufocar, de todo, as inclinações que me arrastavam para a terra admirável de Santa Cruz, então perdida para a minha visão espiritual no maciço das grandes florestas.
Não obstante o amargurado carreiro por que transitei através de incidentes e acidentes dolorosos, o mistério verde da mata permanecia vivo em meu coração, e o contato com a literatura da Inglaterra e do continente europeu nunca me subtraiu as imprecisas reminiscências.
É por isso que, hoje, valendo-me do “hall” que o Espiritismo me oferece para visitar, ao de leve, a alma brasileira, regozijo-me assinalando a vida nova que se edifica na paisagem soberba e farta, cujo quadro inexprimível faz o êxtase de todos os artistas da sensibilidade e da inteligência, desde Pero Vaz de Caminha, o prestimoso corresponde de Dom Manuel.
Rejubilo-me, observando que o Brasil não fugiu à vocação de fraternidade que lhe marcou os vacilantes passos do início.
Por muito que esbravejem na crítica moderna os pessimistas intransigentes, que em tudo veem a falência espiritual de que se sentem possuídos, somos, aqui, lavradores otimistas e felizes, confiados no esplêndido porvir da jovem e vigorosa nação, depósito de firmes esperanças de milhões de espíritos, empenhados na regeneração humana.
Sempre existirá quem lobrigue inconsciência onde há juventude, aventura onde há necessidade, falta de segurança onde apenas sobra inexperiência.
Efetivamente, quem poderia contar com harmonia num campo de plantação incipiente? A sementeira não desvenda a beleza da colheita.
O arado impõe o suor da preocupação e a inquietude da incerteza. O celeiro traça o sorriso da paz e do reconforto. E a hora atual do Brasil ainda é de preparação intensiva, de ação experimental e de esforço edificante.
Os nefelibatas (que anda nas nuvens) do idealismo sem obras se referem às realizações monumentais dos povos avançados, estabelecendo descaridoso confronto entre a comunidade brasileira, ainda em processo de ajustamento, e aqueles países de hegemonia política, olvidando o senso das proporções.
Não advogaríamos a causa do Brasil, que não necessita de nós para fazer-se valer na civilização contemporânea, nem desrespeitaríamos as grandes nações que orientam a vida moderna; entretanto, seria ilícito indagar se conviria o progresso material sem alicerces morais suficientemente consolidados.
De que nos valem o poder aquisitivo, a técnica das indústrias, a produção em massa, a universidade ativa e a riqueza rural, se não possuímos diques capazes de barrar as paixões individuais e as raciais, que ateiam o ruinoso fogo da guerra?
De que serve construirmos soberbos templos, levantados à fé e à arte, para depois serem incendiados pelo nosso próprio vandalismo?
Será razoável sensibilizar a alma coletiva com o espargimento de ideias salvacionistas, inclusive as de bondade fraterna e as de boa vizinhança, bombardeando, em seguida, hospitais e lares abertos?
Será compreensível a exaltação de princípios superiores, quais os da dignidade pessoal e da liberdade humana, gastando-se três quartas partes do dinheiro público em petrechos bélicos, a par de quase total esquecimento da educação popular?
Não louvaríamos os que edificam a escola, armando os alunos para a derruírem depois.
A vida não é trepidação de nervos, a corrida armamentista ou a tortura de contínua defesa, é expansão da alma e crescimento do homem interior, que se não coadunam com a arte de matar.
Sobre este mundo, em que a inteligência perquire as forças mais íntimas da Natureza, mas somente para conservar o poderio e o domínio destrutivos, um novo mundo surgirá.
Não consideramos riqueza a posse de vastos potenciais econômicos, sem respeito pelos fundamentos morais, e nem julgamos dignos de apreço os palácios que se levantam em nome da cultura para a exaltação da força contra o direito, da prepotência contra a justiça e da raça contra a Humanidade.
A palavra do Cristo vagueia no mundo sem encontrar ouvidos que a recolham. As igrejas, que a distribuem, até certo ponto se assemelham a conservatórios de música preciosa sem artistas que a interpretem.
O romano arrogante e dominador, o grego inteligente o espirituoso, o fenício comerciante e astuto, e o judeu obstinado e rebelde ainda se fazem sentir, sob indumentária nova, em todas as latitudes da Terra, com o mesmo viço espiritual de há vinte séculos. Em contraste com a sublimidade do Evangelho, temos a impressão de que a consciência humana ainda não se desamarrou das fraldas infantis. Excetuadas algumas organizações individuais, tocadas de santificante heroísmo, em todas as nações o conteúdo de animalidade na massa anônima revela que a civilização ainda se encontra próxima da caverna dos primatas e que o barco da vida, por enquanto, veleja muito longe do porto em que lhe cabe atracar.
Sob o ponto de vista moral, o homem comum, em muitos aspectos, ainda lembra o chimpanzé, agora com a inteligência desenvolta.
De alguns milênios para cá, a mente humana tem demonstrado diminutas alterações para melhor.
A crueldade e o vício tornam, quase que invariáveis, à arena da luta planetária, exibindo novas formas.
Povos aparecem e desaparecem sob as leis da morte e da reencarnação, a geografia política sofre modificações em todas as épocas, mas o espírito é o mesmo.
Equiparam-se à miserabilidade o trono do poder sem a majestade espiritual, a glória sem educação ou a liberdade sem deveres.
Em razão disso, o cultivo da fraternidade, na terra brasileira, onde representantes de quase todos os povos se entrelaçam para a obra do entendimento mundial, é indubitavelmente, uma nova esperança para a vida na Terra.
Sob a luz do Cruzeiro, o pensamento do Cristo adquire nova feição. Libertado da velha clausura dos templos de pedra, caminha ao encontro de toda a gente, em obras de iluminação e de assistência do mais alto mérito.
Em nenhum outro país do Globo a prática do Evangelho adquiriu tão intenso movimento e tal progresso.
Achamos que o serviço de aplicação do Cristianismo não é tarefa que se confira aos governos.
Com exceções, as casas de saúde e os asilos mantidos pelos orçamentos oficiais são institutos irrepreensíveis, sem dúvida, mas, na maioria das vezes, guardam simplesmente o rigor e a impassibilidade das próprias leis que o geram.
As casas abertas à fraternidade, somente quando dirigidas pelo coração, é que se revestem de valores mais altos.
É possível promulgar decretos respeitáveis, determinando os mais completos serviços de solidariedade; todavia, a execução deles se resume na monumentalização de programas estabelecidos, em obras de pedra, com o séquito dos servidores pagos, rigidamente enquadrados às disciplinas estatutárias, mas, muitas vezes, sem o sentimento espontâneo do bem, que é a alma do serviço.
Daí a falência das portarias e ordens administrativas nas tarefas que dizem respeito à iluminação do homem.
O ministério cristão não começou entre as autoridades administrativas, mas sim no seio do povo, por intermédio de alguns homens e mulheres de vida simples, indicando-nos a comunhão fraterna por única via de aplicação dos princípios regeneradores, descidos do Céu.
O Brasil entendeu a sugestão divina e, em pleno século das grandes guerras, violentas e ferozes, vemo-lo agasalhando a Boa Nova renascente, sob o manto luminoso do Espiritualismo, da solidariedade e da paz, erguendo templos e educandários, creches e sanatórios, abrigos e hospitais, com alicerces no sentimento puro de seus filhos, descerrando a era nova em que os homens se amarão realmente uns aos outros.
No apostolado da hora primeira, não vemos Jesus disputando a governança terrestre para transformar o mundo. Não se empenha Ele em acordos políticos com o Império Romano, nem requisita lugar no Sinédrio. Toma a seu cuidado alguns corações humildes e de boa vontade, plasmando neles a fundação do Reino Divino.
Principia a obra redentora, de indivíduo para indivíduo, de alma para alma, de coração para coração.
Jesus chama Pedro e André e, em seguida, busca Tiago e João.
Do Mestre aos discípulos e dos aprendizes aos seguidores, há ligações conscienciais.
Entre as atribulações do mundo moderno, possuímos, de novo, nas linhas da evolução brasileira, o ministério salvacionista.
Levanta-se o homem, voluntariamente, para abraçar o companheiro ignorante ou o fraco e acolhê-lo.
Indiscutivelmente, achamo-nos ainda muito longe da vitória final; até lá, milhões sofrerão o cerco das sombras e das lágrimas; contudo, diante da nova Pátria, verdejante e farta, que o Brasil oferece à fraternidade mundial, no elevado entendimento da missão que lhe cumpre, nossas esperanças se elevam, em cânticos de louvor, ao Céu, com a certeza de que a Terra porvindoura será o lar abençoado de uma Humanidade mais feliz.

(*) O mensageiro espiritual se refere à reencarnação dele mesmo, no Brasil colonial no século XVI.

ROBERT SOUTHEY (1843) — Poeta, historiador e crítico inglês. Viajou por Portugal e Espanha. Em Lisboa se deu ao estudo da Língua e da Literatura portuguesa e espanhola. Sem nunca ter vindo à América, escreveu a “História do Brasil”, obra clássica e sumamente apreciada.

Espírito Robert Southey, do livro Falando à Terra. Página recebida por Chico Xavier, em 1951.

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