03 fevereiro 2020

O bom ladrão


Parte inicial

Alguns dias antes da prisão do Mestre, os discípulos, nas suas discussões naturais, comentavam o problema da fé, com desejo desordenado de quantos se atiram aos assuntos graves da vida, tentando, apressadamente, forçar uma solução.
Como será essa virtude? De que modo a conservaremos intacta no coração? Inquiria Levi, com atormentado pensamento. Tenho a convicção de que somente o homem culto pode conhecer toda a extensão de seus benefícios.
Não tanto assim aventava Tiago, seu irmão, eu acredito que basta a nossa vontade, para que a confiança em Deus esteja viva em nós.
Mas a fé será virtude para os que apenas desejam? Perguntava um dos filhos de Zebedeu…
A um canto, como se estivesse distante daqueles duelos da palavra, Jesus parecia meditar. Em dado instante, solicitado ao esclarecimento, respondeu com suavidade:
A fé pertence, sobretudo, aos que trabalham e confiam. Tê-la no coração é estar sempre pronto para Deus. Não importam a saúde ou a enfermidade do corpo, não têm significação os infortúnios ou os sucessos felizes da vida material. A alma fiel trabalha confiante nos desígnios do Pai, que pode dar os bens, retirá-los e restituí-los em tempo oportuno, e caminha sempre com serenidade e amor, por todas as sendas pelas quais a mão generosa do Senhor a queira conduzir.
—Mas, Mestre – redarguiu Levi, em respeitosa atitude –, como discernir a vontade de Deus, naquilo que nos acontece? Tenho observado grande número de criaturas criminosas que atribuem à Providência Divina os seus feitos delituosos e uma legião de pessoas inertes que classificam a preguiça como fatalidade divina.
—A vontade de Deus, além da que conhecemos através de sua lei e de seus profetas, através do conselho sábio e das inclinações naturais para o bem, é também a que se manifesta, a cada instante da vida, misturando a alegria com as amarguras, concedendo a doçura ou retirando-a, para que a criatura possa colher a experiência luminosa no caminho mais espinhoso. Ter fé, portanto, é ser fiel a essa vontade, em todas as circunstâncias, executando o bem que ela nos determina e seguindo-lhe o roteiro sagrado, nas menores sinuosidades da estrada que nos compete percorrer.
—Entretanto – observou Tomé –, creio que essa qualidade excepcional deve ser atributo do espírito mais cultivado, porque o homem ignorante não poderá cogitar da aquisição de semelhante patrimônio.
O Mestre fitou o apóstolo com amor e esclareceu:
—Todo homem de fé será, agora ou mais tarde, o irmão dileto da sabedoria e do sentimento; porém, essa qualidade será sempre a do filho leal ao Pai que está nos céus.
O discípulo sorriu e obtemperou:
—Todavia, quem possuirá no mundo lealdade perfeita como essa?
—Ninguém pode julgar em absoluto disse o Cristo com bondade —, a não ser o critério definitivo de Deus; mas, se essa conquista da alma não é comum às criaturas de conhecimento parco ou de posição vulgar, é bem possível que a encontremos no peito exausto dos mais infelizes ou desclassificados do mundo.
O apóstolo sorriu desapontado, no seu cepticismo de homem prático. Dentro em pouco, a pequena comunidade se dispersava, à aproximação do manto escuro da noite…

Chico Xavier/Humberto de Campos, do livro Boa Nova

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