03 julho 2024

Identificação do espírito


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—Corria o ano de 1581, quando um caso estranho ocorreu em Sevilha – contou-nos o Espírito do Padre Diego Ortigosa, em agradável tertúlia fraternal.
—Desencarnara um médico atencioso e amigo dos pobres, D. Juarez Costanera y Salcedo – continuou ele com a graça do narrador inteligente –, quando, alguns meses mais tarde, apareceu uma jovem que se dizia assistida pela alma do esculápio, ensinando medicação à pobreza desamparada. Encheu-se-lhe a casa humilde e tosca de famintos da saúde e o médico desencarnado atendia, de boa vontade, orientando o tratamento de criaturas enfermas e infelizes. A donzela, convertida em intermediária, não mais encontrou tempo para cuidar de si mesma. As horas disponíveis eram escassas para atender a pessoas doentes e abatidas de sua cidade e vizinhanças. Pouco a pouco, o fenômeno tornava-se conhecido a distância e grande número de peregrinos lhe batiam à porta. Vinham de longe e queriam possuir, de novo, a saúde, a paz, a esperança.
Corria o interessante trabalho regularmente, mas os familiares de Costanera y Sucedo não viram com bons olhos a movimentação popular, em torno da memória do seu chefe desencarnado.
A jovem Cecília Anteguera, que servia de médium entre o morto prestativo e as criaturas angustiadas, tinha vida simples, atendendo às necessidades dos outros e aos seus próprios deveres em família, mas foi denunciada à Inquisição como feiticeira.
Não tardou o encarceramento. A acusada invocou os princípios de caridade a que servia, recorreu ao nome de Deus, amigos dedicados intercederam por ela, junto aos algozes, mas a pobrezinha foi retida, incomunicável, para longas inquirições. A par dos beneficiários agradecidos que pediam a sua absolvição, surgiram senhoras fanatizadas e cavalheiros inconscientes que afirmavam tê-la visto entregando-se a noturnos sortilégios, na via pública, ou explorando a boa fé alheia, como ladra vulgar, terminando as acusações gratuitas com o pedido de condenação formal e imediata. Alguns chegavam a rogar lhe fosse dada a bênção da fogueira ou a graça de ser esquartejada viva, no auto-de-fé, em nome da caridade da Igreja.
E não valeram os bons ofícios dos protetores prestigiosos.
O padre Gaspar Alfonso Costanera y Salcedo, primo do morto, estava interessado na perseguição e, por isso, fez o possível por guardar a jovem na cela imunda. Prometia uma verificação pessoal. Queria certificar-se. Muitos santos da Igreja haviam visto e ouvido as almas dos mortos. E acrescentava, pedante, que esses fatos eram conhecidos desde os patriarcas hebreus, não obstante a proibição de Moisés, que se manifestara contrário ao intercâmbio com os mortos. Entretanto, a seu ver, aquela mulher seria uma bruxa mentirosa e repugnante. Seu primo D. Juarez estava no Céu, gozando a companhia dos anjos e não voltaria, a confabular com mortais desprezíveis. Para isso recebera missas a rodo e solenes exéquias. Que motivo, perguntava ele, levaria um médico a apaixonar-se pelos doentes, além do túmulo? Os Santos e Santas tinham visto almas glorificadas, em beatitude celeste, mas aquela endemoninhada tinha o topete de afirmar que o seu ilustre parente continuava a interessar-se pela medicina, depois da morte.
Não seria loucura? Interrogavam os amigos da acusada. E, se fosse, não seria justo desculpar a demente?
O padre loquaz, porém, deblaterava, irritadiço, e insistia pela prova final.
Com efeito, após longos dias de expectativa, Cecília Anteguera, abatida e enferma, trazendo nos punhos e braços os sinais de terríveis flagelações, foi trazida a uma sala vastíssima, onde se reuniam alguns juízes eclesiásticos, sob a presidência do Inquisidor-mor.
A pobre medianeira, sob olhares sarcásticos, rogou, em silêncio, a Deus a visita do médico desencarnado. Não seria razoável que o Espírito desse prova de sua sobrevivência? Ficaria desamparada, perante os verdugos?
Eis que D. Juarez, o morto, se aproxima.
Transfigura-se a médium. Observando-lhe a palidez e as alterações fisionômicas, o padre Gaspar atende a um sinal do Inquisidor-mor e pergunta, contendo a emoção:
—Estamos em presença do demônio?
A entidade sorriu, utilizando os lábios de Cecília, e respondeu:
—Estais em presença do Espírito.
—Como se chama? – indagou o clérigo.
—Não tenho nome – replicou o desencarnado –, o Espírito é universal.
E continuou o diálogo:
—Confessa que já morreu?
—Sim, já perdi o corpo físico.
—Tem uma pátria?
—Tenho.
—Qual?
—O mundo inteiro.
—Deixou alguma família na Terra?
—Deixei.
—Como se chama essa família?
Antes da resposta, os inquisidores denotavam grande aflição, mas D. Juarez respondeu sem hesitar:
—Chama-se Humanidade.
—Vem do inferno ou do purgatório?
—Não é de vossa conta.
—Tem recomendações a fazer a pessoas do mundo carnal?
—Não devo lembrar o que me compete esquecer para o bem comum.
—Reconhece a autoridade da Igreja?
—Reconheço a eterna autoridade de Jesus-Cristo.
—Oh! Oh!…  – exclamaram os circunstantes.
—Finalmente, qual a sua profissão de fé, o seu propósito? – perguntou o padre Gaspar, exasperado.
D. Juarez, o morto, respondeu sem titubear:
—Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a mim mesmo, cultivar a verdade, fazer o bem e colaborar na fraternidade universal.
Nesse instante, levantaram-se todos, sob grande revolta. O Inquisidor-mor recomendou o recolhimento da endemoninhada, até ulterior deliberação, explicando-se aos sevilhanos que coisa alguma ficara esclarecida e que o assunto não passava de farsa condenável e odiosa.
O narrador fez uma pausa mais longa, mas um dos amigos presentes, interpretando o nosso interesse, indagou:
—E a médium? Que lhe aconteceu?
—Vocês ainda perguntam? – disse o padre Ortigosa, em tom significativo – como a
Inquisição não podia punir o Espírito, queimou a intermediária, em soleníssimo auto-de-fé.
Em seguida sorriu bondosamente e concluiu:
—Cecília de Anteguera, porém, logo após entregar o corpo às cinzas, uniu-se ao Espírito de D. Juarez, em serviço muito mais elevado e profícuo às criaturas humanas, encontrando no sacrifício a sua melhor realização, convertendo-se ainda em devotada amiga de todos os seus acusadores e verdugos, aos quais sempre recebeu, caridosamente, nos primeiros degraus da passagem sombria do túmulo.

Espírito Irmão X (Humberto de Campos), do livro Lázaro Redivivo psicografado por Chico Xavier.

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