17 abril 2024

O louquinho de Bayonne


Em nosso último número dissemos algumas palavras a  respeito dessa estranha manifestação de aparições. Tais informações nos tinham  sido dadas de viva voz e muito sucintamente por um de nossos assinantes, amigo da família onde os fatos ocorreram. Ele nos havia  prometido detalhes mais circunstanciados e devemos à sua cortesia  as informações que nos transmitiu por carta.

Essa família reside perto de Bayonne e as cartas foram escritas pela própria mãe da mocinha, uma criança de seus 10 anos, a um filho que reside em Bordeaux, pondo-o a par do que se passava em sua casa. Este último teve o trabalho de transcrevê-las para nós, a fim de não ser contestada a sua autenticidade; é uma atenção pela qual lhe somos infinitamente reconhecidos. Concebe-se a reserva com que envolvemos os nomes das pessoas, reserva que fazemos por lei observar, a menos que sejamos formalmente autorizados a divulgá-los. Nem todos se preocupam em atrair a multidão de curiosos. Àqueles para os quais essa reserva constituísse um motivo de suspeita, diremos que é necessário estabelecer uma diferença entre um jornal eminentemente sério e os que não visam senão divertir o público. Nossa finalidade não é relatar casos para encher as páginas da Revista, mas esclarecer a Ciência; se estivéssemos enganados, sê-lo-íamos de boa-fé. Quando, aos nossos olhos, uma coisa não é formalmente demonstrada, damo-la apenas a título de registro; o mesmo não ocorre quando emana de pessoas sérias, cuja honradez é conhecida e que, longe de qualquer interesse em nos induzir em erro, desejam também instruir-se.

A primeira carta é do filho ao nosso assinante, enviando as cartas de sua mãe.

Saint-Esprit, 20 de novembro de 1858.

Meu caro amigo,
Chamado para junto da família por motivo da morte de um de meus irmãos menores, que Deus acaba de levar, esta circunstância, afastando-me algum tempo de minha casa, é o motivo do atraso em vos dar minha resposta. Ficaria muito desolado se vos fizesse passar por um contador de histórias junto ao Sr. Allan Kardec; por isso, vou dar alguns detalhes sumários dos fatos ocorridos em minha família. Penso que já vos disse que as aparições cessaram há muito tempo e já não se manifestam à minha irmã. Eis as cartas que minha mãe me escreveu a esse respeito. Devo observar que muitos fatos foram omitidos e não são os menos interessantes. Escreverei novamente para completar a história, caso não o possais fazer, recordando-vos daquilo que vos disse de viva voz.


23 de abril de 1855.

Numa tarde, há cerca de três meses, tua irmã X teve necessidade de sair para fazer uma compra. Como bem sabes, o corredor da  casa é bastante longo e nunca está iluminado, mas o velho hábito de o  percorrermos sem luz faz que jamais tropecemos nos degraus da escada.  X já nos havia dito que, cada vez que saía, escutava uma voz a dizer-lhe  coisas que, de início, não compreendia o sentido, mas que se tornaram  inteligíveis mais tarde. Algum tempo depois viu uma sombra, não cessando, durante o trajeto, de ouvir a mesma voz. As palavras proferidas por esse ser invisível tendiam sempre a tranquilizá-la e dar-lhe conselhos  de muita sabedoria. Uma boa moral constituía o fundo dessas palavras. X ficava muito perturbada e, por várias vezes, não tinha forças para prosseguir em seu caminho. ‘Minha filha’ — dizia-lhe o invisível cada vez  que ficava perturbada — ‘nada temas, porquanto só quero o teu bem.’  Ele lhe ensinou um local em que ela, durante vários dias, encontrou algumas moedas; de outras vezes nada encontrava. X conformou-se com  a recomendação que lhe foi dada e, por muito tempo encontrou, se não  moedas, alguns brinquedos que logo verás. Por certo essas doações lhe  eram feitas para encorajá-la. Não eras esquecido na conversa desse ser;  muitas vezes falava de ti e nos dava notícias tuas por intermédio de tua  irmã. Várias vezes ele nos pôs a par do que fazias à noite; viu-te ler em teu quarto; outras vezes nos disse que teus amigos estavam reunidos  em tua casa. Enfim, ele sempre nos tranquilizava quando a preguiça te  impedia de nos escrever.

Desde algum tempo X tem mantido relações quase contínuas com o invisível; durante o dia ela nada vê; ouve sempre a mesma voz, que lhe dirige palavras de grande sensatez, encorajando-a ao trabalho e ao amor a Deus. À noite ela vê, na direção de onde parte a voz, uma luz rosada que não ilumina, mas que, segundo pensa, pode ser comparada ao brilho de um diamante na sombra. Agora, todo o temor que sentia desapareceu. Se lhe manifesto minhas dúvidas, diz-me: ‘Mamãe, é um anjo que me fala, e se, para te convenceres, tu te armares de coragem, ele me pede para te dizer que, esta noite, fará com que te levantes. Se te falar, deverás responder. Vai aonde ele te mandar; verás pessoas à tua frente, mas não tenhas medo algum.’  Não quis pôr à prova minha coragem: tive medo, e a impressão que isso me causou me impediu de dormir. Muitas vezes, à noite, parecia-me ouvir um sopro à cabeceira do leito. As cadeiras se moviam sem que nenhuma mão as tocasse. Depois de algum tempo, meus temores desapareceram completamente e lamentei bastante não me ter submetido à prova que me havia sido proposta, de estabelecer relações diretas com o invisível, e também por não haver lutado incessantemente contra as dúvidas.

Exortei X a interrogar o invisível sobre a sua natureza. Eis a conversa que tiveram entre si:

X – Quem és tu?
Invisível – Sou teu irmão Eliseu.

X – Meu irmão morreu há doze anos.
Invisível – É verdade; teu irmão morreu há doze anos, mas, como em todos os seres, nele havia uma alma que não morre e que se acha agora em tua presença, que te ama e a todos protege.

X – Gostaria de ver-te.
Invisível – Estou diante de ti.

X – Entretanto nada vejo.
Invisível – Tomarei uma forma visível para ti. Após o ofício religioso tu descerás; ver-me-ás, então, e eu te abraçarei.

X – Mamãe também queria conhecer-te.
Invisível – Tua mãe é a minha; ela me conhece. Eu teria  preferido manifestar-me a ela, e não a ti: era o meu dever, mas não  posso mostrar-me a várias pessoas, porquanto Deus mo proíbe. Lamento que mamãe não tenha tido coragem. Prometo dar-te provas  de minha existência e, então, todas as dúvidas desaparecerão.

À noite, à hora marcada, X se dirigiu à porta do templo. Um rapaz apresentou-se a ela e lhe disse: “Sou teu irmão. Pediste para ver-me. Estás satisfeita? Abraça-me logo, porque não posso conservar por muito tempo a forma que tomei”.

Como bem imaginas, a presença desse ser deveria ter espantado X a ponto de impedi-la de fazer qualquer observação. Tão logo a abraçou, ele desapareceu no ar.

Na manhã do dia seguinte, aproveitando a ocasião em  que X foi obrigada a sair, o invisível manifestou-se novamente e lhe  disse: ‘Deverias ter ficado bastante surpreendida com o meu desaparecimento. Pois bem! Vou ensinar-te a te elevares no ar, a fim de poderes  acompanhar-me.’ Fosse outra pessoa e X teria ficado apavorada com  a proposta. Ela, porém, aceitou a oferta com diligência e logo sentiu  que se elevava como uma andorinha. Chegou rapidamente a um local onde havia uma multidão considerável. Conforme nos disse, viu  ouro, diamantes e tudo o que, na Terra, satisfaria nossa imaginação.  Ninguém considerava essas coisas mais do que consideramos as pedras das calçadas por onde caminhamos. Ela reconheceu várias meninas de sua idade que moravam em nossa rua e que haviam morrido  há muito tempo. Em um apartamento ricamente decorado, onde  não havia ninguém, o que sobretudo lhe chamou a atenção foi uma  grande mesa na qual, de espaço em espaço, havia um papel. Diante  de cada caderno havia um tinteiro; ela via as penas molharem-se por  si mesmas e traçarem caracteres sem que nenhuma mão as movesse.

Ao retornar, censurei-a por se ter ausentado sem a minha autorização e proibi-lhe expressamente de recomeçar semelhantes excursões. O invisível deu-lhe provas de muito pesar por me haver contrariado e prometeu-lhe formalmente que, doravante, não a levaria mais a se ausentar sem que eu estivesse prevenida.

26 de abril.

O invisível transfigurou-se aos olhos de X. Tomou tua  forma tão bem que tua irmã acreditou que estavas no salão. Para certificar-se, ela lhe pediu que retomasse sua forma primitiva; logo que  desapareceste foste substituído por mim. Grande foi o seu espanto;  perguntou-me como eu me achava ali, estando a porta fechada a  chave. Então ocorreu uma nova transformação: tomou a aparência do irmão morto e disse a X: ‘Tua mãe e todos os membros da família  não veem sem espanto, e mesmo sem um sentimento de temor, todos  os fatos que se realizaram por minha intervenção. Não desejo absolutamente causar pavor; quero, entretanto, provar minha existência e pôr-te ao abrigo da incredulidade de todos, pois poderiam tomar  como mentira tua, o que seria da parte deles uma obstinação em não  se renderem à evidência. A Sra. C. trabalha em loja de armarinho;  sabes que é preciso comprar botões; vamos todos comprá-los. Transformar-me-ei em teu irmãozinho — ele tinha então 12 anos — e,  quando retornares a casa, pedirás a mamãe que mande perguntar à  Sra. C. com quem te encontravas no momento em que te venderam  os botões.’ X não deixou de observar essas instruções. Eu mandei perguntar à Sra. C. e ela me respondeu que tua irmã estava com teu  irmão, a quem fez grandes elogios, dizendo que, em sua idade não  se poderia imaginar que tivesse respostas tão fáceis e, sobretudo, tão  pouca timidez. É bom dizer que o pequeno estava na escola desde a  manhã e só deveria retornar às sete horas da noite e que, além disso,  é muito tímido e não tem essa facilidade que lhe querem reconhecer.  Não é bastante curioso? Creio que a mão de Deus não é inteiramente alheia a essas coisas inexplicáveis.

7 de maio de 1855.

Não sou mais crédula do que se deve ser e não me deixo dominar por ideias supersticiosas. Entretanto, não posso me recusar a crer em fatos que se realizaram sob meus olhos. Eu necessitava de provas bastante evidentes para não infligir à tua irmã os castigos que algumas vezes me via obrigada a lhe dar, receando que ela quisesse brincar conosco e abusar de nossa confiança.

Ontem, eram cinco horas aproximadamente quando o invisível disse a X: ‘É provável que mamãe te mande a alguma parte, a fim de dares um recado. No caminho serás agradavelmente surpreendida pela chegada da família de teu tio.’ Imediatamente X me transmitiu o que o invisível lhe houvera dito; eu estava longe de esperar esses parentes e mais surpresa ainda de sabê-lo dessa maneira. Tua irmã saiu e as primeiras pessoas que encontrou foram efetivamente meu irmão, sua esposa e seus filhos, que vinham nos visitar. X apressou-se em dizer que eu tinha uma prova a mais da veracidade de tudo quanto me dizia.

10 de maio de 1855.

Hoje já não posso duvidar de algo extraordinário em casa; vejo sem medo se realizarem todos esses fatos singulares, mas deles não posso extrair nenhum ensinamento porque, para mim, esses mistérios são inexplicáveis.

Ontem, depois de ter posto ordem na casa — e sabes que  faço questão dessas coisas — o invisível disse a X que, malgrado as provas que havia dado de sua intervenção em todos os fatos curiosos que  te narrei, eu sempre tinha dúvidas, que ele queria fazer desaparecerem  completamente. Sem que se tivesse ouvido qualquer ruído, um minuto  foi suficiente para pôr os cômodos em completa desordem. Sobre o assoalho uma substância avermelhada havia sido derramada; creio que era  sangue. Se tivessem sido somente algumas gotas, eu teria pensado que  X se tivesse cortado ou sangrado o nariz, mas imagina que o assoalho estava inundado. Essa prova bizarra deu-nos um trabalho considerável  para fazer com que o piso do salão readquirisse o seu brilho primitivo.

Antes de abrir as cartas que nos envias, X conhece o conteúdo. O invisível lho transmite.

16 de maio de 1855.

X não aceitou uma observação que lhe fez sua irmã, não  sei a propósito de quê. Deu uma resposta inconveniente e recebeu merecido troco. Castiguei-a e ela foi-se deitar sem haver jantado. Como  de costume, antes de deitar-se faz uma prece. Essa noite ela o esqueceu,  mas, alguns momentos depois de deitada, o invisível apareceu-lhe e lhe  apresentou um castiçal e um livro de preces semelhante ao que costumava utilizar, dizendo-lhe que, apesar da punição que ela bem merecera, não devia esquecer-se de cumprir seu dever. Então ela se levantou, fez o  que lhe era ordenado e, tão logo terminada a prece, tudo desapareceu.

Na manhã do dia seguinte, depois de ter-me abraçado,  X perguntou-me se o castiçal que se encontrava sobre a mesa num andar acima de seu quarto tinha sido retirado. Ora, esse castiçal,  semelhante ao que lhe havia sido apresentado na véspera, não tinha  mudado de lugar, assim como o seu livro de preces.

4 de junho de 1855.

Desde algum tempo nenhum fato chamou a atenção, a não ser o seguinte. Eu estava resfriada nestes últimos dias. Antes de ontem tuas irmãs estavam ocupadas e eu não dispunha de ninguém para mandar comprar uma pomada peitoral. Disse a X que quando ela tivesse acabado sua tarefa fosse procurar alguma coisa na farmácia mais próxima. Ela esqueceu minha recomendação e eu mesma não pensei mais nisso. Estou certa de que ela não saiu, nem deixou o trabalho senão para ir buscar uma sopeira de que necessitávamos. Grande foi sua surpresa ao retirar-lhe a tampa e encontrar um pacote de pastilhas de cevada que o invisível havia trazido e ali depositado, a fim de poupar-me de uma caminhada e, também, para satisfazer meu desejo, que havia sido esquecido.

* * *

Evocamos esse Espírito numa das sessões da Sociedade e  lhe dirigimos as perguntas que se seguem. O Sr. Adrien o viu sob o  aspecto de um menino de 10 a 12 anos: bela cabeça, cabelos negros e  ondulados, olhos negros e vivos, tez pálida, boca zombeteira, caráter  leviano, mas bondoso. O Espírito disse não saber muito bem por  que o evocavam.

Nosso correspondente, que estava presente à reunião,  disse que eram exatamente esses os traços pelos quais a mocinha, em  várias circunstâncias, o descreveu.

1- Ouvimos contar a história de tuas manifestações numa família de Bayonne e desejaríamos fazer-te algumas perguntas.

R. – Fazei-as e eu responderei. Mas fazei logo, pois estou com pressa e quero ir embora.

2- Onde apanhaste o dinheiro que davas à menina?
R. – Tirei da bolsa dos outros. Bem compreendeis que eu não iria me divertir a cunhar moedas. Tomo daqueles que podem dar.

3- Por que te ligaste àquela garota?
R. – Grande simpatia.

4- É verdade que foste seu irmão, que morreu com 4 anos?
R. – Sim.

5- Por que eras visível a ela, e não à sua mãe?
R. – Minha mãe deve estar privada de ver-me, mas minha irmã não tinha necessidade de castigo. Aliás, foi com permissão especial que lhe apareci.

6- Poderias explicar como te tornas visível ou invisível à vontade?
R. – Não sou bastante elevado e estou muito preocupado com o que me atrai para responder a essa pergunta.

7- Se quisesses, poderias aparecer em nosso meio, assim como te mostraste à vendedora do armarinho?
R. – Não.

8- Nesse estado, serias sensível à dor, se te batessem?
R. – Não.

9- O que aconteceria se a vendedora te houvesse batido?
R. – Ela não teria encontrado senão o vácuo.

10- Sob que nome podemos te chamar quando falarmos de ti?
R. – Chamai-me de louquinho, se quiserdes. Deixai-me, é preciso que eu vá embora.

11- [A São Luís] – Seria útil que tivéssemos às nossas ordens um Espírito assim?
R. – Tende-os frequentemente junto de vós, assistindo-vos sem que o suspeiteis.

Allan Kardec.

Revista Espírita, Janeiro de 1859.

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