26 janeiro 2023

Impressões


Espírito Deodoro da Fonseca, do livro Falando à Terra, psicografado por Chico Xavier, em 1951.

Volvidos sessenta e um anos sobre a proclamação da República no Brasil, não recordamos o evento para lastimar a audaciosa apostasia, ante os princípios monárquicos, mesmo porque a evolução transita por sendas inelutáveis.
Muitos espíritos comodistas enxergaram em nós somente o pupilo ingrato do grande Imperador e nos cumularam de sarcasmo e sofrimento que nos seguiram até a morte do corpo; mas outros, tanto quanto nós mesmos, conseguiram reconhecer no homem pequenino, que as circunstâncias arrebatavam ao anonimato, o simples instrumento do progresso renovador.
O povo determina os acontecimentos, e os acontecimentos se encarnam nos homens que o representam.
Quantas vezes o eleito da multidão paga o imposto do sacrifício ou da morte pela escolha que não pediu ou pelo título que não disputou?
Não comparecemos, pois, à tribuna que o Espiritismo nos oferece, para lamentar o passado ou repisar mágoas que a memória humana ainda não esqueceu. Nosso intuito, em rememorando a consagração definitiva dos nossos ideais republicanos, é o de alongar os olhos mais ao centro de nossas realidades essenciais.
Indubitavelmente, na hora de emancipação do poder, não seria lícito buscar outros padrões para a constituição orgânica da comunidade nacional senão naquelas fontes visceralmente democráticas que os povos avançados nos ofereciam; e a nata intelectual, como também o escol político, se debruçava sobre os princípios de Auguste Comte e devoraram as tradições inglesas e norte-americanas, com a volúpia do artista de imaginação superexcitada que descobrisse no vasto território brasileiro uma nova Hélade (Grécia), brilhante e gloriosa, perfeitamente habilitada à assimilação de princípios sublimes, sem qualquer serviço preparatório do entendimento popular.
Proclamada a República e lançada a Carta Magna de 1891, é que reparamos a enorme população ruralizada, a disparidade dos climas, a extensão do deserto verde, as tragédias do sertão, o problema da seca, a necessidade de uma consciência sanitária na massa popular, os imperativos da alfabetização, a incultura da liberdade, a escassez de sentimento cívico, a excentricidade das comunas municipais, e o espírito ainda estreito de numerosas regiões.
O programa compulsório do País não poderia se afastar da educação nos mínimos pontos; entretanto, tecêramos precioso manto constitucional com frases e textos de fina polpa democrática, quase impraticável, além dos subúrbios do Rio de Janeiro.
Cabe-nos confessar hoje, honestamente, que ignorávamos a nossa condição de povo juvenil, com idiossincrasias que não pudéramos perceber; em vão tentamos o transplante das árvores ideológicas da Inglaterra, da França e da Suíça para a nossa gleba político-administrativa, de vez que o conceito de Estado não passava de ideia pragmática em nossa mente coletiva, ainda incapaz de vivê-la no trabalho e na responsabilidade, no pensamento e na emoção dos povos que se ergueram para tomar as rédeas dos próprios destinos.
E, por isso, em mais de meio século, temos agido e reagido, através de continuadas experimentações, tendendo, como é natural, para a centralização do governo, contra a expectativa de quantos sonham com o puro parlamentarismo britânico para as nossas realidades imediatas.
Nossa palavra, contudo, não expressa desilusão ou desânimo.
Compreendemos agora que uma nação é setor da Humanidade e que um povo é uma grande família espiritual operando no tempo, com tarefas determinadas no engrandecimento do mundo.
A República foi descerrada ao espírito brasileiro na hora certa; e se é verdade que pecamos por incapacidade de supervisão das nossas exigências objetivas, não é menos certo que cada coletividade, quanto cada indivíduo, desfruta o direito de evoluir e, consequentemente, a prerrogativa de experimentar e de errar, no sentido construtivo, pavimentando o próprio caminho de acesso aos mais altos valores da Civilização.
Apaixonados, presentemente, pela obra de educação e assistência, antes de quaisquer conquistas novas em matéria de liberdades públicas, aguardamos, com alegria, a vocação ao retorno à lide carnal para melhor servir à Pátria, credora do nosso alto espírito de renunciação.
Não possuímos milagroso formulário de emergência para a cura das dificuldades políticas, inevitáveis e transcendentes em todos os gabinetes da atualidade, ao dispor daqueles que orientam a vida nacional.
Confiamos sinceramente na dignidade e na boa-vontade de quantos se encontram nos postos diretivos e esperamos que a Luz Divina tão positivamente evidenciada em nossa destinação histórica, se fixe nas atitudes dos dirigentes e nas deliberações do povo, conjugando autoridade e colaboração no erguimento do progresso comum.
Efetivamente, não dispomos ainda do equipamento industrial, dos recursos técnicos, da disciplina e das virtudes públicas que caracterizam as comunidades anglo-saxônicas; mas a grande balança do mundo, todavia, acusa, em nosso favor, uma civilização respeitável ao calor dos trópicos; um potencial econômico inapreciável; a verdadeira noção de fraternidade que podemos definir por base da democracia genética; o instinto de solidariedade humana; o culto sistemático aos ideais superiores; a ojeriza natural pelo nefasto orgulho de raça; o pacifismo construtivo; o respeito tradicional à independência dos outros; a veneração aos tratados e aos compromissos assumidos; a bondade inata; a penetração rápida nos enigmas espirituais; o sentimento religioso na exaltação da caridade; a iniciativa do bem; a colaboração espontânea em todas as obras que colimem erguer o indivíduo para níveis superiores; o zelo pela justiça; a vocação da liberdade; o sonho de largueza; o desprendimento da posse material e, sobretudo, a devoção sublime à Humanidade que converteu os nossos oito milhões de meio de quilômetros quadrados em Nosso Lar do Evangelho redivivo para o mundo faminto de verdadeira regeneração.
Exaltando, assim o Brasil, berço de nossas melhores aspirações, saudamos o nosso glorioso futuro, rogando a Deus que tenhamos a coragem de sermos nós mesmos, unidos na execução do novo mandamento, que para os jovens da Nação pode ser resumido numa simples palavra – trabalhar.

DEODORO DA FONSECA, Manuel (1892) — Marechal brasileiro. Proclamador da República no Brasil em 1889, sendo seu primeiro Presidente. Bravo militar e coração generoso. Terminou sua vida num insulamento voluntário.

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