07 abril 2020

Aos meus filhos


Meus filhos, eu venho falar a vocês como alguém que abandonasse a noite de Tirésias (profeta cego de Tebas), no carro fulgurante de Apolo, subindo aos cumes dourados e perfumados do Hélicon. Tudo é harmonia e beleza na companhia dos numes e dos gênios, mas o pensamento de um cego, em reabrindo os olhos nas rutilâncias da luz, é para os que ficaram, lá longe dentro da noite onde apenas a esperança é uma estrela de luz doce e triste.
Não venho da minha casa subterrânea de São João Batista (O espírito se refere ao cemitério de São João), como os mortos que os larápios, às vezes, fazem regressar aos tormentos da Terra, por mal dos seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus olhos enfermos e as minhas disposições orgânicas.
Cá estou como se houvesse sorvido um néctar de juventude no banquete dos deuses. Entretanto, meus filhos, levanta-se entre nós um rochedo de mistério e de silêncio.
Eu sou eu. Fui o pai de vocês e vocês foram meus filhos. Agora somos irmãos. Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória inacessível. A morte não suprimiu a minha afetividade e a ainda possuo o meu coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo.
Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que agrupavam enternecidas para escutá-lo. As árvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia. Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento na paisagem musicada. A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto. Não posso transmitir esse mistério maravilhoso através dos métodos imperfeitos de que disponho. E, se pudesse, existe agora entre nós o fantasma da dúvida.
Convidado pelo Senhor, eu também estive no banquete da vida. Não nos palácios da popularidade ou da juventude efêmera, mas no átrio pobre e triste do sofrimento onde se conservam temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E quando os infortúnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino, senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria. Minhas dores eram minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como a espada afiadíssima balouçando-se sobre a minha cabeça. Aí na Terra, entre a crença e a descrença, está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade.
Venho até vocês cheio de amorosa ternura e se não posso me individualizar, apresentando-me como o pai carinhoso, não podem vocês garantir a impossibilidade da minha sobrevivência. A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras. Um morto, como eu, não pode esperar a certeza ou a negação dos vivos que receberem a sua mensagem para a qual há de prevalecer o argumento dubitativo. E nem pode exigir outra coisa quem no mundo não procederia de outra forma.
Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filho ignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santa das mães. Tenho necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu desejo, volto para falar a vocês paternalmente como no tempo em que destruía o fosfato do cérebro a fim de adquirir combustível para o combustível para o estômago.
—Meus filhos!… Meus filhos!… Estou vivendo… Não me veem?… Mas olhem, olhem o meu coração como ainda está batendo por vocês!…
Aqui, meus filhos, não me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas do Petit Trianon; não fui inquirido a respeito dos meus triunfos literários e não me solicitaram informes sobre o meu fardão acadêmico. Em compensação, fui arguido acerca das causas dos humildes e dos infortunados pelos quais me bati.
Vivam, pois, com prudência na superfície desse mundo de futilidades e de glórias vãs.
Num dos mais delicados poemas de Wilde, as Órcades lamentara a morte de Narciso junto de sua fonte predileta, transformada numa taça de lágrimas.
—Não nos admira – suspiram elas – que tanto tenhas chorado!… Era tão lindo!…
—Era belo Narciso? – perguntou o lago.
—Quem melhor do que tu poderás sabê-lo, se nos desprezavas a todas para estender-se nas relvas da tua margem, baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?…  A fonte respondeu:
—Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho das suas pupilas, o reflexo da minha própria beleza.
Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando não são Narciso, enamorados de sua própria formosura, são as fontes de Narciso.
Não venho exortar a vocês como sacerdote; conheço de sobra às fraquezas humanas. Vivam, porém a vida do trabalho e da saúde, longe da vaidade corruptora. E, na religião da consciência retilínea, não se esqueçam de rezar. Eu, que era um homem tão perverso e tão triste, estou aprendendo de novo a minha prece, como fazia na infância, ao pé de minha mãe, na Parnaíba.
—Venham, meus filhos!… Ajoelhemos de mãos postas… Não veem que cheguei de tão longe?! Fui mais feliz que o Rico e o Lázaro da parábola, que não puderam voltar… Ajoelhemos no templo do Espírito; inclinem vocês a fronte sobre o meu coração. Cabem todos nos meus braços? Cabem, sim…
Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai nosso… Que estais no céu… Santificado seja o vosso nome…

Humberto de Campos, do livro Crônicas de Além-tumulo, psicografado por Chico Xavier

Leia a biografia de Humberto de Campos

0 Comments:

Postar um comentário