19 janeiro 2020

Maria de Magdala


Maria de Magdala lava os pés de Jesus
Maria de Magdala ouvira as pregações do Evangelho do Reino, não longe da Vila principesca onde vivia entregue a prazeres, em companhia de patrícios romanos, e tomara-se de admiração profunda pelo Messias.
Que novo amor era aquele apregoado aos pescadores singelos por lábios tão divinos? Até ali, caminhara ela sobre as rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de condenáveis alegrias. No entanto, seu coração estava sequioso e em desalento. Jovem e formosa, emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza lhe escravizara aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas seu espírito tinha fome de amor, profeta nazareno havia plantado, em sua alma, novos pensamentos. Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades da vida lhe traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas voluptuosas não encontravam eco em seu íntimo, os enfeites romanos de sua habitação se tornaram áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não compreendesse ainda o que pleiteava o profeta desconhecido.
Entretanto, seu convite amoroso parecia ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus chamava os homens para uma vida nova.
Decorrida uma noite de grandes meditações e antes do famoso banquete em Naim, onde ela ungiria publicamente os pés de Jesus com os bálsamos perfumados de seu afeto, notou-se que uma barca tranquila conduzia a pecadora a Cafarnaum. Dispusera-se a procurar o Messias, após muitas hesitações. Como a receberia o Senhor, na residência de Simão? Seus conterrâneos nunca lhe haviam perdoado o abandono do lar e a vida de aventuras. Para todos, era ela a mulher perdida que teria de encontrar a lapidação na praça pública. Sua consciência, porém, lhe pedia que fosse. Jesus tratava a multidão com especial carinho. Jamais lhe observara qualquer expressão de desprezo para com as numerosas mulheres de vida equivoca que o cercavam. Além disso, sentia-se seduzida pela sua generosidade. Se possível, desejaria trabalhar na execução de suas ideias puras e redentoras. Propunha-se a amar, como Jesus amava, sentir com os seus sentimentos sublimes. Se necessário, saberia renunciar a tudo. Que lhe valiam as joias, as flores raras, os banquetes suntuosos, se, ao fim de tudo isso, conservava a sua sede de amor?!…
Envolvida por esses pensamentos profundos, Maria de Magdala penetrou o umbral da humilde residência de Simão Pedro, onde Jesus parecia esperá-la, tal a bondade com que a recebeu num grande sorriso. A recém-chegada sentou-se com indefinível emoção a estrangular-lhe o peito.
Vencendo, porém, as suas mais fortes impressões, assim falou, em voz súplice, feitas as primeiras saudações:
–Senhor, ouvi a vossa palavra consoladora e venho ao vosso encontro!… Tendes a clarividência do céu e podeis adivinhar como tenho vivido! Sou uma filha do pecado. Todos me condenam. Entretanto, Mestre, observai como tenho sede do verdadeiro amor!… Minha existência, como todos os prazeres, tem sido estéril e amargurada…
As primeiras lágrimas lhe borbulharam dos olhos, enquanto Jesus a contemplava, com bondade infinita. Ela, porém, continuou:
–Ouvi o vosso amoroso convite ao Evangelho! Desejava ser das vossas ovelhas, mas, será que Deus me aceitaria?
O Profeta nazareno fitou-a, enternecido, sondando as profundezas de seu pensamento, e respondeu, bondoso:
–Maria, levanta os olhos para o céu e regozija-te no caminho, porque escutaste a Boa Nova do Reino e Deus te abençoa as alegrias! Acaso, poderias pensar que alguém no mundo estivesse condenado ao pecado eterno? Onde, então, o amor de Nosso Pai? Nunca viste a primavera dar flores sobre uma casa em ruínas? As ruínas são as criaturas humanas; porém, as flores são as esperanças em Deus.
Sobre todas as falências e desventuras próprias do homem, as bênçãos paternais de Deus descem e chamam. Sentes hoje esse novo Sol a iluminar-te O destino!
Caminha agora, sob a sua luz, porque o amor cobre a multidão dos pecados.
A pecadora de Magdala escutava o Mestre, bebendo-lhe as palavras. Homem algum havia falado assim à sua alma incompreendida. Os mais levianos lhe pervertiam as boas inclinações, os aparentemente virtuosos a desprezavam sem piedade. Engolfada em pensamentos confortadores e ouvindo as referências de Jesus ao amor, Maria acentuou, levemente:
–No entanto, Senhor, tenho amado e tenho sede de amor!…
–Sim – redarguiu Jesus –, tua sede é real, o mundo viciou todas as fontes de redenção e é imprescindível compreenda que em suas sendas a virtude tem de marchar por uma porta muito estreita. Geralmente, um homem deseja ser bom como os outros, ou honesto como os demais, olvidando que o caminho onde todos passam é de fácil acesso e de marcha sem edificações. A virtude no mundo foi transformada na porta larga da conveniência própria. Há os que amam os que lhes pertencem ao círculo pessoal, os que são sinceros com os seus amigos, os que defendem seus familiares, os que adoram os deuses de favor. O que verdadeiramente ama, porém, conhece a renúncia suprema a todos os bens do mundo e vive feliz, na sua senda de trabalhos para o difícil acesso às luzes da redenção. O amor sincero não exige satisfações passageiras, que se extinguem no mundo com a primeira ilusão; trabalha sempre, sem amargura e sem ambição, com os júbilos do sacrifício. Só o amor que renuncia sabe caminhar para a vida suprema…
Maria o escutava, embevecida. Ansiosa por compreender inteiramente aqueles ensinos novos, interrogou atenciosamente:
– Só o amor pelo sacrifício poderá saciar a sede do coração?
Jesus teve um gesto afirmativo e continuou:
– Somente o sacrifício contém o divino mistério da vida. Viver bem é saber imolar-se.
Acreditas que o mundo pudesse manter o equilíbrio próprio tão-só com os caprichos antagônicos e por vezes criminosos dos que se elevam à galeria dos triunfadores? Toda luz humana vem do coração experiente e brando dos que foram sacrificados. Um guerreiro coberto de louros ergue os seus gritos de vitória sobre os cadáveres que juncam o chão, mas, apenas os que tombaram fazem bastante silêncio, para que se ouça no mundo a mensagem de Deus. O primeiro pode fazer a experiência para um dia; os segundos constroem a estrada definitiva na eternidade.
Na tua condição de mulher, já pensaste no que seria o mundo sem as mães exterminadas no silêncio e no sacrifício Não são elas as cultivadoras do jardim da vida, onde os homens travam a batalha?!… Muitas vezes, o campo florescido se cobre de lama e sangue, entretanto, na sua tarefa silenciosa, os corações maternais não desesperam e reedificam o jardim da vida, imitando a Providência Divina, que espalha sobre um cemitério os lírios perfumados de seu amor!…
Maria de Magdala, ouvindo aquelas advertências, começou a chorar, a sentir no íntimo o deserto da mulher sem filhos. Por fim, exclamou:
– Desgraçada de mim, Senhor, que não poderei ser mãe!…
Então, atraindo-a brandamente a si, o Mestre acrescentou:
– E qual das mães será maior aos olhos de Deus?
A que se devotou somente aos filhos de sua carne, ou a que se consagrou, pelo espírito, aos filhos das outras mães?
Aquela interrogação pareceu despertá-la para meditações mais profundas. Maria sentiu-se amparada por uma energia interior diferente, que até então desconhecera. A palavra de Jesus lhe honrava o espírito, convidava-a a ser mãe de seus irmãos em humanidade, aquinhoados com os bens supremos das mais elevadas virtudes da vida. Experimentando radiosa felicidade em seu mundo íntimo, contemplou o Messias com os olhos nevoados de lágrimas e, no êxtase de sua imensa alegria, murmurou comovidamente:
– Senhor, doravante renunciarei a todos os prazeres transitórios do mundo, para adquirir o amor celestial que me ensinastes!… Acolherei como filhas as minhas irmãs no sofrimento procurarei os infortunados para aliviar-lhes as feridas do coração, estarei com aleijados e leprosos…
Nesse instante, Simão Pedro passou pelo aposento, demandando o interior, e a observou com certa estranheza. A convertida de Magdala lhe sentiu o olhar glacial, quase denotando desprezo e, já receosa de um dia perder a convivência do Mestre, perguntou com interesse:
– Senhor, quando partirdes deste mundo, como ficaremos?
Jesus compreendeu o motivo e o alcance de sua palavra e esclareceu:
– Certamente que partirei, mas estaremos eternamente reunidos em espírito.
Quanto ao futuro, com o infinito de suas perspectivas, é necessário que cada um tome sua cruz, em busca da porta estreita da redenção, colocando acima de tudo a fidelidade a Deus e, em segundo lugar, a perfeita confiança em si mesmo.
Observando que Maria, ainda opressa pelo olhar estranho de Simão Pedro, se preparava a regressar, o Mestre lhe sorriu com bondade e disse:
– Vai, Maria!… Sacrifica-te e ama sempre. Longo é o caminho, difícil a jornada, estreita a porta mas, a fé remove os obstáculos… Nada temas: é preciso crer somente!

Chico Xavier/Humberto de Campos, do livro Boa Nova

0 Comments:

Postar um comentário