08 janeiro 2020

Entendendo o renascimento


Jerusalém quase dormia sob o véu espesso da noite alta. Silêncio profundo se fizera sobre a cidade. Jesus, no entanto, e aqueles dois discípulos continuavam presos à conversação particular que haviam entabulado. Desejavam eles ardentemente penetrar o sentido oculto das palavras do Mestre. Como seria possível aquele renascimento? Não obstante os seus conhecimentos, também partilhavam da perplexidade que levara Nicodemos a se retirar fundamente surpreendido.
—Por que tamanha admiração, em face destas verdades? perguntou-lhes Jesus, bondosamente. As árvores não renascem depois de podadas? Com respeito aos homens, o processo é diferente, mas o espírito de renovação é sempre o mesmo.
O corpo é uma veste. O homem é seu dono. Toda roupagem material acaba rota, porém, o homem, que é filho de Deus, encontra sempre em seu amor os elementos necessários à mudança do vestuário. A morte do corpo é essa mudança indispensável, porque a alma caminhará sempre, através de outras experiências, até que consiga a imprescindível provisão de luz para a estrada definitiva no Reino de Deus, com toda a perfeição conquistada ao longo dos rudes caminhos.
André sentiu que uma nova compreensão lhe felicitava o espírito simples e perguntou:
—Mestre, já que o corpo é como que à roupa material das almas, por que não somos todos iguais no mundo? Vejo belos jovens, junto de aleijados e paralíticos…
—Acaso não tenho ensinado – disse Jesus – que tem de chorar todo aquele que se transforma em instrumento de escândalo? Cada alma conduz consigo mesma o inferno ou o céu que edificou no âmago da consciência. Seria justo conceder-se uma segunda veste mais perfeita e mais bela ao espírito rebelde que estragou a primeira? Que diríamos da sabedoria de Nosso Pai, se facultasse as possibilidades mais preciosas aos que as utilizaram na véspera para o roubo, o assassínio, a destruição? Os que abusaram da túnica da riqueza vestirão depois as dos fâmulos e escravos mais humildes, como as mãos que feriram podem vir a ser cortadas.
—Senhor, compreendo agora o mecanismo do resgate – murmurou Tiago, externando a alegria do seu entendimento. – Mas, observo que, desse modo, o mundo precisará sempre do clima do escândalo e do sofrimento, desde que o devedor, para saldar seu débito, não poderá fazê-lo sem que outro lhe tome o lugar com a mesma dívida.
O Mestre apreendeu a amplitude da objeção e esclareceu os discípulos, perguntando:
—Dentro da lei de Moisés, como se verifica o processo da redenção?
Tiago meditou um instante e respondeu:
—Também na lei está escrito que o homem pagará “olho por olho, dente por dente”.
—Também tu, Tiago, estás procedendo como Nicodemos – replicou Jesus com generoso sorriso. - Como todos os homens, aliás, tens raciocinado, mas não tens sentido. Ainda não ponderaste, talvez, que o primeiro mandamento da lei é uma determinação de amor. Acima do “não adulterarás”, do “não cobiçarás”, está o “amar a Deus sobre todas as coisas, de todo o coração e de todo o entendimento”. Como poderá alguém amar o Pai, aborrecendo-lhe a obra?
Contudo, não estranho a exiguidade de visão espiritual com que examinaste o texto dos profetas. Todas as criaturas hão feito o mesmo. Investigando as revelações do céu com o egoísmo que lhes é próprio, organizaram a justiça como o edifício mais alto do idealismo humano. E, entretanto, coloco o amor acima da justiça do mundo e tenho ensinado que só ele cobre a multidão dos pecados. Se nos prendemos à lei de talião, somos obrigados a reconhecer que onde existe um assassino haverá, mais tarde, um homem que necessita ser assassinado; com a lei do amor, porém, compreendemos que o verdugo e a vítima são dois irmãos, filhos de um mesmo Pai. Basta que ambos sintam isso para que a fraternidade divina afaste os fantasmas do escândalo e do sofrimento.

—Ante as elucidações do Mestre, os dois discípulos estavam maravilhados. Aquela lição profunda esclarecia-os para sempre.
Tiago, então, aproximou-se e sugeriu a Jesus que proclamasse aquelas verdades novas na pregação do dia seguinte. O Mestre dirigiu-lhe um olhar de admiração e interrogou:
—Será que não compreendeste? Pois, se um doutor da lei saiu daqui sem que eu lhe pudesse explicar toda a verdade, como queres que proceda de modo contrário, para com a compreensão simplista do espírito popular? Alguém constrói uma casa iniciando pelo teto o trabalho? Além disso, mandarei mais tarde o Consolador, a fim de esclarecer e dilatar os meus ensinos.
Eminentemente impressionados, André e Tiago calaram as derradeiras interrogações. Aquela palestra particular, entre o Senhor e os discípulos, permaneceria guardada na sombra leve da noite em Jerusalém; mas, a lição a Nicodemos estava dada. A lei da reencarnação estava proclamada para sempre, no Evangelho do Reino.

Chico Xavier/Humberto de Campos, do livro Boa-nova

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